Pular para o conteúdo principal

Ikai - Parte 7


Por meses transitei pelo laboratório como um meteoro, descrevendo uma órbita excêntrica, muitíssimo distante dos demais residentes daquele sistema, mas vez ou outra perto o suficiente para estender a mão e dizer olá. Mas tal qual corpos celestes, fui me sentindo cada vez mais atraído, e em minhas peregrinações mentais e literais, acabei me tornando mais próximo dos outros.
Acontece que criaturas sintéticas, tal qual corpos celestes, por natureza preferem um pouco mais de espaço, ao menos quando comparado com os criadores orgânicos, que anseiam pela colisão de corpos. No início preferia percorrer a imensidão dos salões circulares do Laboratório sozinho, olhando para o mundo verdejante de lá de fora contrastante com o branco ensurdecedor onde eu estava, e contrastando, sobretudo com o cheiro de curry, o conforto das almofadas, o prazer e a estratégia das jogadas, o perigo do cigarro. Eu contemplava e me perguntava, por que? Por que eu ainda pensava em Yudhistira, por que sentia esse sentimento singular? Por que sentia, mesmo sem sofrer? O que havia?
No início dos meus passeios orbitais pelo Laboratório comecei uma teoria sobre como os sentimentos poderiam ter brotado no meu cérebro positrônico: Tudo começava com arte. A arte de Sanjay, mais especificamente, que em virtualidade contemplava tudo, por ser meu semelhante, meu profundo semelhante robótico. Mas havia naquela perfeição artística da representação da minha mente um buraco, uma lacuna, algo que ele não poderia saber, ou conhecer, justamente Yudhistira, meu amo, e sua mania de fumar cigarro, e a forma como preferia o frango cozido, qual era sua estratégia no xadrez e todas as minúcias de anos de relacionamento.
Foi a partir disso que fiz minha teoria: Os sentimentos surgem do nada. Melhor dizendo, são algo que brotam da falta, uma produção da ausência, algo que se faz, ou se projeta a partir do que não está presente.
Por meses orbitei no Laboratório sob supervisão da Doutora Brihaspati, que no início lutava para entender minhas explicações, mas sempre se esforçou pra fingir que entendia. Na maioria dos casos esse fingimento é o que basta. Sanjay não foi um grande companheiro nos meus passeios e devaneios sobre a mente e seus significados... Ao invés de filosofar, ele se expressava com novas esculturas virtuais.
Vi residentes do Laboratório que me precederam, embora poucos interagissem diretamente: havia dois androides que passavam dias e noites assistindo filmes preto e branco, uma senhora sintética que havia escrito 462 romances, incontáveis contos e sonetos, unidades xátria com estresse pós-traumático e androides de companhia de Programação Singular.
A Doutora Brihaspati acreditava que eu era um desses últimos, um androide cuja programação de cuidados ficara tão intrinsecamente ligada a um indivíduo em específico, que causara comportamento anômalo, fazendo surgir essa “saudade sintética”, como um constante reboot positrônico a um momento de trauma. Não havia muita diferença prática entre o estresse pós-traumático (que algumas unidades xátria sofriam) com a Programação Singular, mas enquanto o caso deles estava voltado unicamente a situações de violência e destruição perpetrados a outras unidades robóticas, a Programação Singular era uma espécie de trauma que ligava um androide a uma pessoa, um lugar, um momento, de maneira repetida e irregular.
Mas havia dois problemas nessa teoria da Doutora Brihaspati. O primeiro era que a programação singular estava restrito a modelos mais antigos. Portanto androides Ikai, como Sanjay e eu, poderiam desenvolver sentimentos, mas jamais através deste fenômeno, que estaria restrito a modelos mais antiquados que nós. E em segundo lugar, eu não sofria com a perda de Yudhistira. Deixe-me ser mais claro: Minhas funções programáticas, sub-rotinas positrônicas e capacidades computacionais permaneciam inalteradas, ao contrário dos modelos antigos, que ao serem acometidos de Programação Singular, passam por degeneração lógica e adotavam comportamento auto-destrutivo.
 Apesar de não sofrer, quando Doutora Mahara me fazia perguntas, minhas respostas eram programáticas – sempre com associações aos anos divididos naquele apartamento com ar com pouca circulação, pouco movimento e muito pensamento.
Numa de minhas viagens mais distantes dos demais, lembrei da nuvem e da maravilhosa sensação de estar sentado no nada, no mar de nada, desfeito em apenas dados e informação no mundo digital, sem restrição de corpo, matéria, circuitos, tempo e metal, e mesmo assim ser capaz de ver naquele não-lugar outros como eu,  suspensos em suas próprias distâncias, identificáveis apenas pelo brilhante fio de Ariadne que os ligava aos seus próprios corpos de metal, enquanto estavam sublimados naquele upload, suspensos na nuvem. Lembro de pensar eu preferiria me aproximar dos outros sintéticos na nuvem, para vê-los de perto, desnudados de seus corpos de metal. Será que seriam iguais? Será que também me enxergariam, brilhando como um fio dourado no horizonte do não-espaço?
Andei bastante absorto nessas questões até decidir ir ao centro delas, e me dirigi à câmara de conexão. Muito diferente da cabine de recarga, aquela instalação quase improvisada do apartamento de Yudhistira, a câmara de conexão do Laboratório era impressionante: não tinha tubos, fios, apenas mínimos conectores no neurochip, entre os olhos. Todo o enorme salão em forma de abóboda era a própria cama de encubação, e permitia que os corpos robóticos fossem recarregados enquanto as mentes positrônicas ascendessem para a nuvem. 
Fui até lá com o LP Blue, de Yusef Lateef. Coloquei o vinil no toca discos antiquíssimo, calculei os movimentos do meu braço ao conduzir a haste e depositei a agulha de diamante na faixa Like It Is.
Ouvi o ruído e aspereza do som se transformarem em piano, flauta de bambu, cordas, sax tenor... Esse era meu brinde, meu ritual à transformação pela qual pretendia mais uma vez passar. Da matéria à suprema abstração, do aspereza do toque analógico à formulação de algo sem tradução: Jazz, Saudades, Sentimentos. Deixei a música de outro século encher o salão e ressoar na abóboda. Me sentei e fechei as pálpebras, comecei a meditar.
Me reuni por inteiro entre meus olhos na cadência do piano e do chimbal, como se  fossem minha respiração, porque eu não respiro. Deixei o som entrar e sair de mim, e me projetei além dali. Subi, como uma gota de orvalho que fica quente demais para permanecer aglutinada e se torna vapor, se erguendo até se religar religiosamente à nuvem.
Uma vez lá, contemplei fios de Ariadne brilhando no horizonte, senti a presença de todos os meus programas, todas minhas sub-rotinas, pensamentos, memórias e sentimentos. Olhei para meu lado ao invés de olhar para baixo, onde estava meu corpo de metal, e então depois de tanto tempo calado, eu olhei nos olhos da memória e falei:
- Olá Yudhistira.


Comentários