Minha consciência
deitou na gôndola e o Navegante me levou deslizando pela Nuvem
Autônoma de Virtualidades. Por um tempo fitei meu condutor refletindo o que ele
representava, e conclui que, retirada a feição construída pelo meu
subconsciente positrônico com o rosto de Yudhistira, aquela
sombra só poderia ser eu mesmo, minha morte, minha sombra. A lacuna de onde derivava meus ainda
inexplorados sentimentos. Eu ainda não estava convencido de que conhecida tudo
sobre meu passado, e o peso das dúvidas fez a gôndola ficar pesada.
Nas proximidades a
nuvem de virtualidades refletia minha composição mental, minhas próprias lembranças. No horizonte onde havia Fios de Ariadne outros autômatos estavam
sublimados, enquanto seus corpos de metal jaziam em hibernação nas cabines de
recarga. O Navegante estendeu sua mão de sombras na direção do
horizonte, indicando o mesmo fio de Ariadne que eu contemplava. A aproximação revelou que as lembranças daquele
autômato em hibernação eram de algo que eu compartilhava. Refletido nas nuvens
que nos rodeavam eu vi uma das unidades Xátria que sofriam de estresse
pós-traumático revivendo a sua cena de horror particular. Esta cena dizia
respeito ao meu amo, Senhor Yudhistira.
Logo ficou claro:
Ratnapura não é uma cidade grande, e as pouquíssimas unidades robóticas de
policiamento são empregadas apenas em cenas de crime que envolvam outros robôs
de inteligência plena, como eu. Então esta unidade Xátria havia sido a mesma a
ir ao apartamento 2112 na ocasião do suicídio de Yudhistira... Mas as nuvens ao
nosso redor revelavam algo a mais. Xátria havia observado a cena da mesma forma
que eu, como uma obra de arte da mais inesgotável tristeza. Algo nos olhos sem
vida de meu amo também chamaram a atenção na unidade Xátria.
Mas era diferente do que eu havia sentido. Xátria era um
modelo avançado, importado da Índia, e possuía uma nova implementação que foi considerada
crucial para que o policiamento se tornasse mais humano na utilização de unidades
robóticas: Xátria tem uma face humana. Decerto, o tom da pele de Xátria ainda era azulada,
para não ser confundida com um humano, mas não possuía a mesma feição sem
expressão dos modelos mais antigos, que mais se assemelhavam capacetes de militares. Apesar do design ter sido pensado em benefício das pessoas, uma transformação aconteceu no robô graças ao fato de ter um rosto humano, pois ao ver o Yudhistira com o rosto arruinado, sentiu algo de completamente novo. Alguma coisa fritou nas sub-rotinas comportamentais da Unidade
Xátria.
Enquanto Harker Gibb e outros
robôs me conduziam para o Laboratório, Xátria levou o corpo sem vida de
Yudhistira para o necrotério. No caminho ele abriu o saco plástico, tocou o
rosto de meu amo e observou sem pudor a cavidade formada pelo projétil. No necrotério a
unidade continuou investigando outros cadáveres, tocando as formas
decompostas, dilaceradas, costuradas, as cicatrizes, procurando sempre por
ausências. Demorou 36 minutos para outras unidades de policiamento chegarem ao
local e desativarem Xátria. Esse comportamento anômalo é o que levou a unidade
a ser conduzida para o Laboratório. Tudo isso eu podia ver nos reflexos da
nuvem, a partir da memória que compartilhamos.
Estendo uma mão
hipotética na nuvem de virtualidades para Xátria. A unidade me olha confusa, em
meio à repetição de drama. Vejo que ele mutilou seu próprio rosto de metal, para
ver sob a própria pele, como havia visto dentro de Yudhistira...
Não há conforto, apenas
dor, fraqueza, doença. Esse turbilhão se levanta, vem até a minha gôndola, e
senta-se comigo.
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