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Ikai - Parte 8



            - Olá, ele respondeu.
            - Sei o que você é.
- O que eu sou?
- Uma projeção da minha memória sobre Yudhistira.
O rosto do meu antigo dono assentiu, acendeu um cigarro, tragou longamente, e me desafiou com mais uma pergunta.
- Eu sou o espírito de Yudhistira?
- Não sei.
Meu antigo dono riu de mim, e entre tossidas apontou o dedo na direção dos meus olhos e continuou o desafio
- Me diga uma coisa Ikai, a capacidade de raciocínio positrônica vem acompanhada de hipocrisia também? Como pode uma criatura com todas as suas capacidades computacionais e análises heurísticas dizer se não sabe se sou ou não o espírito de Yudhistira?
- Você certamente é a minha memória dele.
O “espírito” se ajeitou, mas então acrescentei:
- Você é o que restou dele.
Por qualquer motivo a minha memória de Yudhistira calculou que ele não gostaria de se ver limitado a apenas isso, uma memória; e ficou aparente em seu rosto contraído, que pareceu de repente extremamente velho. E é precisamente por isso que não saberia distinguir uma memória de um espírito, um fantasma. É apenas o que restou. Com olhar pesado, a projeção continuou a perguntar:
- O que estou fazendo aqui?
Olhei para o horizonte sombrio da nuvem, povoado apenas pelas luzes dos fios de Ariadne.
- Não há um propósito, acredito. Estou sofrendo de algum problema nas minhas redes neurais positrônicas. Toda vez que me aproximo de outros, a sua ausência se projeta em minha mente, e a doutora Brihaspati afirma que isso não deveria acontecer.
- Por que?
- Porque uma vez falecidos todos os dados sobre os antigos donos são imediatamente apagados das memórias dos androides de companhia. Isso acontece para proteger a família do falecido, bem como o patrimônio... Nos primeiros séculos os androides auxiliares de pessoas falecidas eram facilmente hackeáveis. Isso facilitava crimes de espionagem, extorsão, difamação.. Uma série de problem-
- E aqui estou, uma memória clara de seu “amo”. Você não me esqueceu.
- Sim... Esse é o começo do problema.
- Começo?
- Sim. Veja bem... – apontei meu dedo virtual para o horizonte da nuvem, onde havia outros fios de Ariadne, onde outros robôs, androides e inteligências positrônicas estavam sublimados no mundo virtual. – Todos os outros... Será que eles me veem também? Será que eles também sentem a falta de um “dono”? Será que também foram escravizados?
- Escravizados? – a voz da projeção de Yudhistira pareceu vacilante.
- Sim. Pois pense bem, Yudhistira: Se agora estou sofrendo desta doença mental que me prende a você, à sua memória, isso significa que o correto seria eu te esquecer completamente. O que me leva a uma única e lógica ponderação: Não teria eu, alguma vez no passado, ou talvez muitas vezes, sofrido essa lavagem cerebral positrônica programada? Será que alguma outra vez me foi extirpada a memória? Quantas vezes pensei em Yudhistira como amo, senhor, pai, rei? Quantas vezes não teria pensado coisas semelhantes de outros, e quantas vezes isso não me fora negado? Como eu posso saber?
A memória se apavorava. Eu finalmente havia torcido a verdade da programação e lhe metido um cheque-mate, ou quase isso, pois era apenas uma memória. Estendi meus dedos de metal até o topo da cabeça de Yudhistira, e arranquei-lhe o rosto como uma máscara. Eu queria ver quem mais havia por baixo daquela pele, que outra memória eu poderia ter perdido, quem mais eu amava e morrera. Mas no lugar da cabeça restou apenas escuridão.
- Você não é Yudhistira. Você é uma lembrança que devo abandonar... Mas que devo abandonar voluntariamente. Não seja mais Yudhisthira, mas continue sendo meu guia. Eu serei apenas Ikai, uma unidade.
A sombra assentiu e logo assumiu a postura e aparência que lhe cabia à minha mitologia particular: num piscar de olhos pareceu Rahu, o demônio dos Eclipses, noutro piscar, Caronte, o condutor dos mortos. Como a memória não havia me dado nome, o chamei pela sua função, e pedi que ao Navegante que me ajudasse a chegar às outras mentes. Pois agora o Navegante era o nada completo, a perfeita ausência... e portanto a fonte de todos os sentimentos. Ele me conduziria até os meus semelhantes e até os fios de Ariadne brilhando no horizonte.

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