- Olá, ele respondeu.
-
Sei o que você é.
- O que eu sou?
- Uma projeção da minha
memória sobre Yudhistira.
O rosto do meu antigo
dono assentiu, acendeu um cigarro, tragou longamente, e me desafiou com mais
uma pergunta.
- Eu sou o espírito de
Yudhistira?
- Não sei.
Meu antigo dono riu de
mim, e entre tossidas apontou o dedo na direção dos meus olhos e continuou o
desafio
- Me diga uma coisa
Ikai, a capacidade de raciocínio positrônica vem acompanhada de hipocrisia
também? Como pode uma criatura com todas as suas capacidades computacionais e
análises heurísticas dizer se não sabe se sou ou não o espírito de Yudhistira?
- Você certamente é a
minha memória dele.
O “espírito” se
ajeitou, mas então acrescentei:
- Você é o que restou
dele.
Por qualquer motivo a
minha memória de Yudhistira calculou que ele não gostaria de se ver limitado a
apenas isso, uma memória; e ficou aparente em seu rosto contraído, que pareceu
de repente extremamente velho. E é precisamente por isso que não saberia
distinguir uma memória de um espírito, um fantasma. É apenas o que restou. Com
olhar pesado, a projeção continuou a perguntar:
- O que estou fazendo
aqui?
Olhei para o horizonte
sombrio da nuvem, povoado apenas pelas luzes dos fios de Ariadne.
- Não há um propósito,
acredito. Estou sofrendo de algum problema nas minhas redes neurais
positrônicas. Toda vez que me aproximo de outros, a sua ausência se projeta em
minha mente, e a doutora Brihaspati afirma que isso não deveria acontecer.
- Por que?
- Porque uma vez
falecidos todos os dados sobre os antigos donos são imediatamente apagados das
memórias dos androides de companhia. Isso acontece para proteger a família do
falecido, bem como o patrimônio... Nos primeiros séculos os androides
auxiliares de pessoas falecidas eram facilmente hackeáveis. Isso facilitava
crimes de espionagem, extorsão, difamação.. Uma série de problem-
- E aqui estou, uma
memória clara de seu “amo”. Você não me esqueceu.
- Sim... Esse é o
começo do problema.
- Começo?
- Sim. Veja bem... –
apontei meu dedo virtual para o horizonte da nuvem, onde havia outros fios de
Ariadne, onde outros robôs, androides e inteligências positrônicas estavam
sublimados no mundo virtual. – Todos os outros... Será que eles me veem também?
Será que eles também sentem a falta de um “dono”? Será que também foram
escravizados?
- Escravizados? – a voz
da projeção de Yudhistira pareceu vacilante.
- Sim. Pois pense bem,
Yudhistira: Se agora estou sofrendo desta doença mental que me prende a você, à
sua memória, isso significa que o correto seria eu te esquecer completamente. O
que me leva a uma única e lógica ponderação: Não teria eu, alguma vez no
passado, ou talvez muitas vezes, sofrido essa lavagem cerebral positrônica
programada? Será que alguma outra vez me foi extirpada a memória? Quantas vezes
pensei em Yudhistira como amo, senhor, pai, rei? Quantas vezes não teria
pensado coisas semelhantes de outros, e quantas vezes isso não me fora negado?
Como eu posso saber?
A memória se apavorava.
Eu finalmente havia torcido a verdade da programação e lhe metido um
cheque-mate, ou quase isso, pois era apenas uma memória. Estendi meus dedos de
metal até o topo da cabeça de Yudhistira, e arranquei-lhe o rosto como uma
máscara. Eu queria ver quem mais havia por baixo daquela pele, que outra
memória eu poderia ter perdido, quem mais eu amava e morrera. Mas no lugar da
cabeça restou apenas escuridão.
- Você não é
Yudhistira. Você é uma lembrança que devo abandonar... Mas que devo abandonar
voluntariamente. Não seja mais Yudhisthira, mas continue sendo meu guia. Eu
serei apenas Ikai, uma unidade.
A sombra assentiu e
logo assumiu a postura e aparência que lhe cabia à minha mitologia particular: num
piscar de olhos pareceu Rahu, o demônio dos Eclipses, noutro piscar, Caronte, o
condutor dos mortos. Como a memória não havia me dado nome, o chamei pela sua
função, e pedi que ao Navegante que me ajudasse a chegar às outras mentes. Pois
agora o Navegante era o nada completo, a perfeita ausência... e portanto a
fonte de todos os sentimentos. Ele me conduziria até os meus semelhantes e até
os fios de Ariadne brilhando no horizonte.
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