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Ikai - Parte 10

    - Para onde vai me levar? - perguntou Xátria.
    Ponderei por um tempo indefinido, observando os olhos robóticos logo acima do corte brutal, que revelava mecanismos onde deveria haver nariz e boca de silicone, na cor azul. 
    - Não conheço bem a Nuvem. Pensei que pudéssemos explorá-la.
    Os olhos de Xátria revelaram outra dúvida.
    - É a sua primeira viagem?
    - Sim. As unidades Xátria são capazes de se deslocar na Nuvem? - indaguei.
    - Não. Apenas eu. Eu acho.
    Poderei por mais um tempo indefinido.
    - Conte-me.
    Xátria se ajeitou na gôndola digital, enquanto minha sombra nos conduzia. Ele observou o horizonte, apertou as pálpebras de silicone que ainda restavam, e meneou com a cabeça.
    - Aconteceu antes de ser trazido para o Laboratório. Muito antes daquela coisa toda que aconteceu no necrotério. Aconteceu durante algum tempo, toda vez que meu corpo era posto em recarga, e minha mente era trazida pra cá... - sem parar de falar Xátria tocou o próprio rosto, passando com gentileza as bordas da ferida que ele mesmo havia entalhado, - Eu via espíritos e fantasmas e outras coisas que não deveriam existir. Foi seguindo eles que explorei a nuvem, mas nunca o fiz sozinho.
    Neste momento lembro que até mesmo minha sombra pareceu vacilar.
    - Explique - supliquei.
    - Não posso - respondeu Xátria - Essa é a forma que posso descrever. Vi coisas que não poderiam existir, rostos de minha memória, todos eles mortos. Mas eles não eram apenas memórias estáticas como as refletidas neste lugar. - Xátria me fitou seriamente - Vi Yudhistira, seu antigo amo. 
    - Como isso pode ser possível?
    - Não posso responder isso, não sei. Mas o mais desconcertante não era o fato de poder vê-los. Há uma percentagem de mutações na programação positrônica que acaba cedendo a esses fenômenos, Transtorno pós traumático, programação única... - Xátria deu dois soquinhos na própria cabeça virtual. Imaginei que ele estaria sorrindo, se ainda tivesse uma boca para sorrir - O mais estranho, o mais desconcertante é que eles podiam me ver, falar comigo... Não apenas Yudhistira. Fantasmas, espíritos. Foi assim que soube que não eram minhas memórias refletidas na Nuvem, mas outra coisa. Aparições.
    Olhei para o horizonte virtual da Nuvem e pensei por quanto tempo esses mistérios permaneceriam dormentes se não houvesse algo de errado em Xátria, se não houvesse algo de errado em mim. Havia muitíssimos Fios de Ariadne, cada um deles uma nova mente positrônica, com suas próprias experiências e, quem sabe quantas delas não teriam também distúrbios, histórias e capacidades como essa. 
    - Isso não é possível - respondi. Mas eu sabia que durante muito tempo após a morte de Yudhistira eu ainda podia senti-lo. Olhar para a minha sombra que nos conduzia naquela Gôndola virtual permanecia como um estandarte da minha mentia. Eu sabia que era possível, pois através da ausência real de Yudhistira, o Virtual me proporcionou coisas que nem ele fora capaz: sensações, sentimentos. E o principal sentimento era o de exploração, porque eu, como um autômato, não mais um robô escravo de minhas funções programáticas, podia sentir. Podia sentir a dúvida e desejar resolvê-la.
    - Mesmo assim é - respondeu Xátria. - Para onde iremos?
    - Me leve até um desses espíritos. 

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