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Uma refeição solitária para o pistoleiro

    A cuia de madeira cheia de feijão cozido com barriga de porco era devorada ferozmente por uma boca fina, emoldurada por um cavanhaque grosseiro. O olhar sempre atento, por cima de um nariz achatado e um par de cicatrizes. Aquele casebre rancheiro era pequeno demais para a fome daquele homem. Uma velha mesa e uma cadeira de balanço emolduravam o cômodo. O cavalo amarrado lá fora, sempre pronto pra sair. A Colt encoldreada na cintura, sempre pronta pra atirar.
    O vento seco e seus odores já tinham avisado o que viria, contudo, quando seus olhos tocaram aquela silhueta longínqua a alma já sabia o preço do pecado. Engoliu seco seus pensamentos mais obscuros, calçou as botas surradas, se arrastou até a estante e beijou o resto daquele velho uísque. Ascendeu um cigarro,  apanhou o chapéu e pôs-se à porta de casa. O sol refletia os cabelos dourados. Era como uma miragem. Tão doce que ele salivava. O sabor da infância perdida logo traz seu amargor e ao cruzarem-se os olhares foi imediata a reação. O predador sentiu a adrenalina de ser a caça.
     Com a cadência dos pensamentos a silhueta veio enquanto eu também ia à sua direção. O dourado e laranja e bege e cinza de tudo se espalhavam com o vento e poeira do deserto, mas nenhum de nós ousava desviar o olhar. Cada passo no ritmo dos pensamentos, cada pé que avançava tilintava com os ferros contra couro e terra. Contra o ar encardido eu vi uma boca fina emoldurada por um cavanhaque grosseiro, o mesmo olhar atento, as mesmas cicatrizes. Eu andei em direção à silhueta que veio ao meu encontro como um predador, que eu também era. A silhueta era eu.
    
    - É o fim, parceiro.
    - E o que me resta?
    - Uma escolha.
    
    O Vento sopra mais uma vez e abre uma cortina de poeira. Ao nosso lado há uma árvore que antes não estava lá. Meu duplo mantêm a mão direita sobre o coldre, mas num movimento vagaroso ele saca a arma. Eu olho para a minha mão direita e lá está minha Colt, e sobre ela a sombra de um nó de forca pendurado na árvore; porque embora existam dois tipos de homem, até mesmo o mais covarde merece uma escolha.  

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