Espero
que minhas palavras não te façam se sentir violado. Apenas verdadeiro. Quando abri
os olhos, a única verdade visível era que eu estava deitado no assoalho, porque
todos os outros detalhes estavam borrados. Olhei para os lados. Não consegui
virar a cabeça, apenas um pouco os olhos para os quatro cantos daquele quarto.
Só então os outros sentidos começaram a me invadir. Enquanto percebia que
estava mais próximo à uma parede, e amarrado ao chão, também fui assaltado por
outra verdade. E a violência dela tinha acontecido comigo.
Nunca
peçam pela verdade. Eu estava sangrando. Eu estava amordaçado, pinçado ao chão
como uma mariposa no quadro de um colecionador. Os outros sentidos me
assaltaram com vários cheiros metálicos e de dejetos. Não. Poupemos a educação.
Cheiro do meu cu todo cagado e dilacerado por qualquer instrumento rural. O outro
sentido era o terrível zumbido de moscas que pousavam nas minhas feridas
abertas e na merda se espalhou infectando os meus órgãos abdominais.
Mas
eu ainda não estava totalmente putrefato. Espero que minhas palavras não te
façam tremer ou desviar o olhar, porque eu não podia fazer qualquer das duas
coisas. Eu estava amarrado, amordaçado e condenado a fitar o teto. Quando eu
acordei não era capaz de contar os azulejos que cabiam no meu campo de visão,
eu permanecia tremulo e febril durante o repouso e encharcado e suplicante
durante as sessões. Eu gostaria de gastar páginas e metáforas inovadoras para
falar dos dias que se amontoavam sobre os outros, mas seria apenas mais um
clichê. Mas é bem assim. Tortura também tem suas doses de clichê.
Você
nunca espera ter o crânio socado dezenas de vezes enquanto os pulsos em carne
viva fazem do resto do corpo um mero penduricalho quando é amarrado pelos
braços ao teto. Mas o mais surpreendente é que às vezes eles ficam com dó, trazem
água e biscoitos, colocam para tocar minha música favorita... Isso tudo só
parece cumprir com o clichê. Você não espera ter as bolas queimadas, o cu
devorado por ratos, e nem toda a humilhação diária de fitar um mero burocrata
familiar. Meu torturador poderia ser o cara que instalou a internet na minha
casa, ou um pediatra. Mais uma pra conta do clichê cinematográfico. A banalidade
do mal é que ele é real, e toda a caridade que existe no coração do homem vem
na forma de lanches e músicas preferidas.
Eu
olhava para o teto e imaginava Cristo. Perdoem se minhas palavras são
heréticas, mas tenho dó do Filho de Deus. Não pelo seu suplício, como a maioria
dos fiéis costuma ter. Mas uma pena misturada com desprezo. A caridade em forma
de vinho e pão, enquanto meu corpo está apodrecendo sem chance de ressurreição.
Espera. Eu tenho dó sim, Deus me perdoe. Onde está sua paixão neste quarto? Não
mereço nem ao menos me arrastar para poder tropeçar? Levantar-me, pra poder ser
pregado à cruz? Eu não quero coroa, quero um motivo, uma missão, uma finalidade
ou pelo menos o fim.
Mas
não é assim que as coisas são na vida real. Aqui, quem morre é esquecido. Aqui,
quem sofre tortura não é lembrado. Eu já nem me lembro do meu passado. A única
coisa que eu sei é que são 84, ou talvez 64 ladrilhos no teto. Essa é a única
certeza que me dá alforria pra dizer que eu existo, até que eu não possa, nem
isso, nunca mais.
Eu não estou mais
nesse quarto.
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