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Ikai - Parte 6


  
   A confusão da doutora ficou evidente por seus olhos, que foram de um lado ao outro em seu escritório. Ela estava sentada em uma cadeira confortável e eu estava reclinado num divã. A encenação era para ela, mas com certeza eu estava sendo analisado. Ela queria ter certeza que eu tinha emoções; uma certeza que eu apenas acabara de adquirir, mas meus olhos não iam de um lado ao outro como os dela.
   - Poderia explicar, Ikai?
   - Creio que será confuso, doutora.
   - Eu aceito o desafio – ela deu um gole de chá e pousou a xícara na mesa, decidida. Seus olhos se fixaram diretamente nos meus.
   - Doutora, os humanos possuem espírito?
   - Peraí Ikai! Você não disse que ia ser tão confuso. Além do mais, nosso assunto não são as pessoas.
   - Eu prometo que a metáfora fará sentido.
   Ela me fitou sobre os óculos e deu mais um gole de chá, dessa vez mais longo. O calor embaçou de leve as lentes.
  - Bom, Ikai, Como uma cientista eu sou obrigada a fornecer uma resposta suficiente para um critério muito filho da puta: estou limitada pela verdade. E a verdade é que não sei. Não sabemos, nenhum ser humano sabe isso, de verdade.
  - Precisamente – eu disse. – O mesmo não pode ser dito para nós, androides.
   Ela se ajeitou na cadeira.
   - Sua opinião mudou muito rápido.
   - Contra fatos não há argumentos, e nem a necessidade de protelar numa mentira. Eu também estou limitado pela verdade.
   Ela sorriu. Eu correspondi, talvez como uma ação programada, a verdade é que não sei. Antes de me responder, a Doutora Mahara Brihaspati riu, e seu coração palpitou um nervosismo.
   - Sabe Ikai, se isso que você acabou de dizer fosse a público, nós dois estaríamos fritos.
   - É?
   - Com certeza – ela disse – Tem muita gente babaca por aí. Eu duvido que a maioria das pessoas ia gostar dessa sua certeza de ter uma alma.
   - Porque você mesma não sabe se possui uma?
   - Sim.
   Me sentei ereto e fitei diretamente a doutora.
   - Compreendo. Talvez então eu possa explicar como cheguei à minha conclusão. Talvez isso sirva para você encontrar seu próprio espírito.
   Mahara Brihaspati pareceu chocada antes de gargalhar um pouco e levantar para pegar mais chá. 
  - Claro – ela, disse, erguendo um dos braços. Logo em seguida ela deu um gole de chá, uniu as mãos em namastê, e quase encostou o bindi entre os olhos na ponta dos dedos. – me ensine, guru!
   Entendi aquilo como uma piada bem sucedida, e ri. Talvez de forma programada, como o porteiro do Complexo Habitacional Manjunath, ou talvez porque eu realmente havia achado a doutora engraçada. Sorrindo, comecei minha explicação.
   - A nuvem digital é muito semelhante à internet ou aos vários bancos de dados e informações virtuais que são utilizados a milênios. Existem proteções e restrições diferentes, bem como capacidade de armazenamento muito superior, mas a função é basicamente a mesma. Nós, Androides, podemos fazer upload de nossas consciências quando o corpo fica desligado.
   - Certo. E daí?
   - E daí que há uma diferença crucial que está além dessa conceituação. A nuvem é um não-espaço onde consciências são armazenadas. Consciências essas que são dotadas de várias capacidades idênticas às da mente humana, para não falar das inúmeras faculdades que superam as dos humanos.     E dessa forma, aquilo que para vocês é um mero depósito digital, para nós é um universo imaterial que, mesmo assim, possui forma. Quase como um holograma. A grande diferença é que esta projeção não é feita de luz, como os hologramas. Mas de ideias. De sensações e memórias. É difícil descrever para um humano uma experiência que um humano nunca poderá ter.
   - Então descreva a partir de uma experiência humana que você não pode ter, mas cuja definição seja clara pra você.
   Sorri, e dessa vez sei que não foi de maneira programada, porque me surpreendi com a doutora. Demorei um tempo até conseguir responder.
   - Imagine que um dia você acorda, mas não possui mais corpo. Imagine que você acorda em um sonho, completamente sublimada da matéria, mas aquele sonho lhe parece mais real que o metal, perdão, do que a carne. Além disso, tudo o que você vê, pode tocar, e perceber é parte de você. É formado por você.
   - Você está pedindo para que eu imagine uma projeção astral.
   - Acho que sim – eu disse. – Não tenho como ter certeza.
   - Entendi. E o que houve nesse último upload que trouxe a certeza de que tu possui espírito? Afinal de contas, não foi a primeira vez que você se desligou para um stand-by.
   - Na verdade, doutora, foi graças à unidade Ikai chamada Sanjay. A arte dele que me revelou a verdade.
   - Ah é?
   - Sim. A arte dele é realmente perfeita, a imitação da nuvem é surpreendente... Mas é feita a partir da consciência de Sanjay. Como somos o mesmo tipo de androide, há várias coisas que são idênticas, mas uma vez naquela ilusão eu quase imediatamente soube que ela era apenas isso, uma ilusão, pois não estava lá representada a minha própria consciência. 
   Mahara se ajeitou na cadeira.
   - Perfeito, Ikai. Compreendi muito bem o que você disse, mas apesar da sua sagacidade como crítico de arte digital, não consigo entender como isso é prova que você tem um espírito.
   - É que naquele momento, doutora, na nuvem que não me comportava, que era uma ilusão, eu realmente senti algo que não cabe a um robô sentir, ainda que seja um androide empata como eu. Eu senti desespero.
   - Mesmo?! Porquê?
   - Porque a ausência de Yudhistira era mais real que todo o resto. A representação de minhas memórias com ele não estavam na arte de Sanjay, porque elas são minhas, ele não teria como saber delas. E por um milésimo de um momento, enquanto eu ainda decifrava a nuvem como ilusão, me desesperei por talvez ter perdido Yudhistira para sempre. Mas soube que não poderia ser. Ele estará para sempre comigo na nuvem, pois ela é uma das conformações do que eu sou.
   Sem palavras, Mahara Brihaspati se levantou e saiu do escritório. Mais de dez minutos depois ela voltou com Sanjay. Como a milhões de anos se faz nessa terra em momentos de comemoração, colocaram em meu pescoço uma guirlanda de flores. Em seguida trancaram a porta, e sussurrando disseram:
   - Você está certo, você está certo, você está certo – E - agora você tem que ser batizado. Você não é apenas Ikai, não é apenas uma unidade doméstica.
   Me levantei, andei pelo escritório e olhei no espelho.
   - Não. Meu nome é Ikai, como me chamava o meu senhor antes de morrer.

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