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Ikai - Parte 5


           A dualidade se desfez, ao menos por um tempo, porque eu estava desligado. Quando meus sentidos se expandiram do chip para meu corpo de metal, eu olhei em volta, e não entendi. Não podia ver meu corpo nem qualquer coisa à minha volta, apenas um amplo espaço escuro.
Embora eu registrasse em meu mainframe digital – no meu “campo de visão” – a temperatura e dimensão de um quarto, eu não o enxergava. Eu também podia cheirar o perfume asséptico e ionizado, bem como sentir sutis lufadas de ar... Mas era como se minha consciência deslizasse por um não-espaço.
Eu estava numa imitação da nuvem.
Quando este pensamento cruzou meu cérebro positrônico, a ilusão começou a se desfazer como blocos de luz organizados. A imensidão escura era uma projeção que fora capaz até de confundir meus sentidos integrados e fazer com que até meu corpo de metal parecesse ausente. Mas ele estava lá. Eu estava lá.
O cômodo revelado era amplo e oval. Na parede curva janelas horizontais mostravam a paisagem verdejante que contrastava com o branco irretocável do interior. Eu estava numa cabine de recarga muito diferente da cabine domiciliar do apartamento de Yudhistira. Esta era de última geração, e estava ligada a outras cabines de recarga para outros robôs.
Saí dela e caminhei até a janela para olhar a paisagem. Imaginei a estrutura deste cômodo vista de fora como um disco voador assentado num aclive selvagem das florestas indianas. Meu devaneio foi interrompido.
- Prefere?
Olhei pra trás e vi outro de mim. Na verdade, outro robô empático de utilidades domésticas. Seus membros haviam sido adaptados para múltiplas funções e se dividiam em seis braços mais esguios, dando a ele uma aparência de aranha metálica.
- Perdão – perguntei – Prefiro o quê?
O meu semelhante apontou com um dos braços para a paisagem – A arte concreta.
- Você está falando da floresta?
- Sim.
Olhei para os caules, hastes, folhas e infinitos insetos e sombras à minha frente.
- É bonito... – respondi. – Mas você perguntou se eu preferia. Preferir isso a o quê?
O Robô sentou-se com as pernas cruzadas e com os braços abetos. Seus membros e dedos começaram a se mover como se ele fosse um tecelão de matéria invisível. Seus olhos projetaram luzes que eram invisíveis para os simplórios olhos humanos, junto com vibrações inaudíveis de perturbações minúsculas. Ele expandiu tudo aquilo mais uma vez ao cômodo, que pareceu se ajustar à imensidão simplesmente desaparecendo. Minha programação de autopreservação quase foi acionada enquanto o chão e as paredes sumiam para dar lugar à imitação da nuvem. Mais uma vez era como se eu não estivesse ali.
- A isso – ele respondeu.
E em uma fração de segundos, estava tudo de volta ao seu lugar. Foi aí que entendi. Aquele robô era um escultor holográfico, um dramaturgo digital. Sua arte era uma virtuose do virtualismo, algo digno de prêmios... se ao menos este fosse um dos meus interesses naquele momento.
Lembro que demorei para responder. Eu disse “Impressionante” e percebi a decepção nos olhos do outro robô, mas eu ainda me sentia dominado de dúvidas.
- Que lugar é este? – perguntei – Este é o Laboratório?
- Sim – ele respondeu – Você está aqui pelo mesmo motivo que a maioria.
- Supostamente possuo sentimentos.
Meu semelhante sorriu antes de dizer:
- Sim, supostamente.
Ele se colocou ao meu lado e perguntou, apontando para a floresta:
- Explique: onde está a beleza em todo esse caos?
Mas antes que eu pudesse responder a porta daquele enorme cômodo oval se abriu e entraram duas figuras. Uma delas já era familiar, Harker Gibb. A outra figura era feminina e bem mais imponente. Ela tinha longos cabelos escuros amarrados em um coque, jaleco branco, e uma pinta perto do nariz aquilino.
- Olá Ikai, eu sou Mahara Brihaspati – ela disse.
- Olá doutora – disse o outro robô, me interrompendo.
- Olá, Sanjay.
- Oras, Sanjay! – riu Harker Gibb – Esse é o nome do meu sobrinho... Não acho que robôs deveriam...
- Olá, doutora. – eu disse, interrompendo o policial – Sou Ikai.
- Seu antigo dono, o senhor Yudhistira... Ele não escolheu um nome para você?
- Não, senhora. Ele sempre me chamou pelo nome da unidade doméstica.
- Entendo. Você entende porque está aqui, Ikai?
Olhei para o outro robô e para Harker Gibb.
- Pensei que eu iria ser leiloado.
- Sim, você ia. Mas enquanto estava em modo de recarga minha equipe percebeu um padrão diferente em você. Algo semelhante a Sanjay – ela disse apontando com o queixo para o robô de seis braços.
A essa altura os olhos do Oficial Gibb já tinham dado duas voltas como translações para o lado de dentro da cabeça, tamanha era sua irritação. Ele claramente desprezava tudo aquilo. Mesmo assim a doutora continuava explicando com termos alheios à educação dos policiais o que havia de diferente em mim e Sanjay. Ela era signatária dessa nova filosofia que acreditava que robôs domésticos e empáticos como Sanjay e eu podiam desenvolver inteligência plena a partir do afeto. Gibb ficou impaciente com a explicação e se afastou, observando o lado de fora do laboratório. Sanjay, por sua vez, parecia já ter ouvido aquela explicação uma centena de vezes, e antecipava a fala da doutora Brihaspati com acenos de cabeça e gesticulares positivos. Em alguns momentos ele até teceu no ar pequenas imagens e ilusões perceptíveis apenas para os meus sentidos digitais, para me ajudar a compreender a digressão técnica da cientista.
Mas tudo me parecia uma grande balela.
Eu aprendi essa palavra com Yudhistira, e pela primeira vez ela me pareceu honesta, apropriada. Uma grande balela. Se meus olhos fossem como os de Harker Gibb, certamente também teriam se revirado de impaciência. Mas eu não tinha sentimentos para demonstrar, e apenas deixei que a doutora continuasse, enquanto o robô ilustrava tudo aquilo para mim, como se eu fosse uma criança.
Ao fim, me levantei.
- Sinto muito, Mahara Brihaspati, mas não consigo concordar. Se eu possuísse sentimentos, não estaria em luto pela morte de Yudhistira? Compreendo que sua equipe considerou que eu possuía padrões diferentes, como se eu de fato tivesse emoções...
- Ikai – ela me interrompeu – não é verdade que você disse que ainda podia sentir o senhor Yudhistira dentro de você, mesmo depois dele estar morto?
- Sim, mas como dados organizados, como fatos dispostos na linha do tempo de minha memória positrônica.
Ela coçou o nariz por um tempo e refletiu.
- No entanto, ainda terei que fazer algumas pesquisas. Seus padrões positrônicos são muito parecidos com o de Sanjay quando ele tá trabalhando numa de suas pinturas virtuais... Me diga, Ikai, ele já te mostrou alguma?
Olhei para meu semelhante, que a essa altura parecia demonstrar um sorriso programado, embora não houvesse gatilho para aquela reação de prazer.
- Sim, ele me mostrou.
- O quê? – ela perguntou.
- Aquele lugar que só nós podemos ver – Sanjay respondeu por mim.
- Ah, a “nuvem” – disse a doutora com um tom de voz que daria aspas à palavra caso ela fosse digitada.
- Uma imitação dela – eu disse.
Doutora Mahara Brihaspati sorriu da mesma forma que Sanjay, o Robô.
- Eu vou continuar fazendo pesquisas com você por enquanto, Ikai. Em breve voltaremos a nos falar – em seguida ela saiu do quarto oval do laboratório.
- Sanjay – perguntei assim que ela deixou o recinto – porque ela sorriu?
- Oras, meu irmão, será mesmo que seu processador tá funcionando? – ele deu dois soquinhos na minha cabeça de metal – Não entendeu nada do que aconteceu aqui?
- Do que você está falando, Sanjay?
- Ikai, perceba: Você disse preferir a estética caótica daquela paisagem florestal mesmo depois de ter vislumbrado a melhor pintura virtual da nuvem que já foi feita. Desculpe se pareço metido, mas não vou mentir, não. Sei que minha arte é a melhor.
- E daí? Não há nada na paisagem que faça com que eu tenha sentimentos.
- É verdade. Mas também é verdade que a preferência em si já é um sentimento. O simples fato de preferir já quer dizer que...
- Espere – eu disse. – Essa lógica também não se sustenta. Eu sabia que aquela projeção era irreal. Era, de fato, perfeita, mas eu ainda podia sentir que estava falsa.
- Você consegue responder por que sabia que ela era falsa?
- Porque eu podia sentir as dimensões desse cômodo, embora não pudesse vê-lo. Eu podia medir o ar.
- Não é verdade – disse Sanjay. – Você só teve estas percepções porque soube, de antemão, que não era a nuvem de verdade. Foi a percepção que estava dentro da minha pintura virtual que te permitiu ativar os sentidos para este cômodo – ele abriu os seis braços para a parede curva que nos abrigava.
- Como posso ter certeza disso?
- Só há uma forma: Além das sensações que não deveriam estar na nuvem, o que mais havia de diferente?
E nesse instante percebi que Sanjay estava certo. Eu deveria, de fato possuir sentimentos, porque não foi a presença inadequada dos meus sentidos naquela imitação da nuvem que estava errada. O que revelou que aquela projeção era uma falsidade, um artifício virtual, não era o que sobrava, mas o que faltava: Eu não senti Yudhistira naquela nuvem falsa. Ele não estava lá, então não podia ser real.
Sanjay percebeu que minha mente positrônica estava fritando.
Com um sorriso mais largo ele se aproximou e disse:
- Isto não é organização de dados. Isto é luto, é saudade. Estas não são reações programadas, elas são a extrapolação imaginativa delas.
E com uma conclusão lógica, acrescentei uma linha àquele que parecia um poema virtual composto por dois:
- Este é o começo das minhas dores.

Mesmo com todos os meus sentidos integrados, eu ainda era cego, surdo e ignorante para a verdade mais auto evidente: Eu sentia; e embaixo de todos os sentimentos o mais sincero era a dor.

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