A dualidade se desfez, ao menos
por um tempo, porque eu estava desligado. Quando meus sentidos se expandiram do
chip para meu corpo de metal, eu olhei em volta, e não entendi. Não podia ver
meu corpo nem qualquer coisa à minha volta, apenas um amplo espaço escuro.
Embora eu registrasse em meu
mainframe digital – no meu “campo de visão” – a temperatura e dimensão de um
quarto, eu não o enxergava. Eu também
podia cheirar o perfume asséptico e ionizado, bem como sentir sutis lufadas de
ar... Mas era como se minha consciência deslizasse por um não-espaço.
Eu estava numa imitação da nuvem.
Quando
este pensamento cruzou meu cérebro positrônico, a ilusão começou a se desfazer
como blocos de luz organizados. A imensidão escura era uma projeção que fora
capaz até de confundir meus sentidos integrados e fazer com que até meu corpo
de metal parecesse ausente. Mas ele estava lá. Eu estava lá.
O
cômodo revelado era amplo e oval. Na parede curva janelas horizontais mostravam
a paisagem verdejante que contrastava com o branco irretocável do interior. Eu
estava numa cabine de recarga muito diferente da cabine domiciliar do
apartamento de Yudhistira. Esta era de última geração, e estava ligada a outras
cabines de recarga para outros robôs.
Saí
dela e caminhei até a janela para olhar a paisagem. Imaginei a estrutura deste
cômodo vista de fora como um disco voador assentado num aclive selvagem das florestas
indianas. Meu devaneio foi interrompido.
-
Prefere?
Olhei
pra trás e vi outro de mim. Na verdade, outro robô empático de utilidades
domésticas. Seus membros haviam sido adaptados para múltiplas funções e se
dividiam em seis braços mais esguios, dando a ele uma aparência de aranha metálica.
-
Perdão – perguntei – Prefiro o quê?
O
meu semelhante apontou com um dos braços para a paisagem – A arte concreta.
-
Você está falando da floresta?
-
Sim.
Olhei
para os caules, hastes, folhas e infinitos insetos e sombras à minha frente.
-
É bonito... – respondi. – Mas você perguntou se eu preferia. Preferir isso a o
quê?
O
Robô sentou-se com as pernas cruzadas e com os braços abetos. Seus membros e
dedos começaram a se mover como se ele fosse um tecelão de matéria invisível.
Seus olhos projetaram luzes que eram invisíveis para os simplórios olhos
humanos, junto com vibrações inaudíveis de perturbações minúsculas. Ele expandiu
tudo aquilo mais uma vez ao cômodo, que pareceu se ajustar à imensidão
simplesmente desaparecendo. Minha programação de autopreservação quase foi
acionada enquanto o chão e as paredes sumiam para dar lugar à imitação da
nuvem. Mais uma vez era como se eu não estivesse ali.
-
A isso – ele respondeu.
E
em uma fração de segundos, estava tudo de volta ao seu lugar. Foi aí que
entendi. Aquele robô era um escultor holográfico, um dramaturgo digital. Sua
arte era uma virtuose do virtualismo, algo digno de prêmios... se ao menos este
fosse um dos meus interesses naquele momento.
Lembro
que demorei para responder. Eu disse “Impressionante” e percebi a decepção nos
olhos do outro robô, mas eu ainda me sentia dominado de dúvidas.
-
Que lugar é este? – perguntei – Este é o Laboratório?
-
Sim – ele respondeu – Você está aqui pelo mesmo motivo que a maioria.
-
Supostamente possuo sentimentos.
Meu
semelhante sorriu antes de dizer:
-
Sim, supostamente.
Ele
se colocou ao meu lado e perguntou, apontando para a floresta:
-
Explique: onde está a beleza em todo esse caos?
Mas
antes que eu pudesse responder a porta daquele enorme cômodo oval se abriu e
entraram duas figuras. Uma delas já era familiar, Harker Gibb. A outra figura
era feminina e bem mais imponente. Ela tinha longos cabelos escuros amarrados
em um coque, jaleco branco, e uma pinta perto do nariz aquilino.
-
Olá Ikai, eu sou Mahara Brihaspati – ela disse.
-
Olá doutora – disse o outro robô, me interrompendo.
-
Olá, Sanjay.
-
Oras, Sanjay! – riu Harker Gibb – Esse é o nome do meu sobrinho... Não acho que
robôs deveriam...
-
Olá, doutora. – eu disse, interrompendo o policial – Sou Ikai.
-
Seu antigo dono, o senhor Yudhistira... Ele não escolheu um nome para você?
-
Não, senhora. Ele sempre me chamou pelo nome da unidade doméstica.
-
Entendo. Você entende porque está aqui, Ikai?
Olhei
para o outro robô e para Harker Gibb.
-
Pensei que eu iria ser leiloado.
-
Sim, você ia. Mas enquanto estava em modo de recarga minha equipe percebeu um
padrão diferente em você. Algo semelhante a Sanjay – ela disse apontando com o
queixo para o robô de seis braços.
A
essa altura os olhos do Oficial Gibb já tinham dado duas voltas como
translações para o lado de dentro da cabeça, tamanha era sua irritação. Ele
claramente desprezava tudo aquilo. Mesmo assim a doutora continuava explicando
com termos alheios à educação dos policiais o que havia de diferente em mim e
Sanjay. Ela era signatária dessa nova filosofia que acreditava que robôs
domésticos e empáticos como Sanjay e eu podiam desenvolver inteligência plena a
partir do afeto. Gibb ficou impaciente com a explicação e se afastou,
observando o lado de fora do laboratório. Sanjay, por sua vez, parecia já ter
ouvido aquela explicação uma centena de vezes, e antecipava a fala da doutora Brihaspati
com acenos de cabeça e gesticulares positivos. Em alguns momentos ele até teceu
no ar pequenas imagens e ilusões perceptíveis apenas para os meus sentidos
digitais, para me ajudar a compreender a digressão técnica da cientista.
Mas
tudo me parecia uma grande balela.
Eu
aprendi essa palavra com Yudhistira, e pela primeira vez ela me pareceu
honesta, apropriada. Uma grande balela. Se meus olhos fossem como os de Harker
Gibb, certamente também teriam se revirado de impaciência. Mas eu não tinha
sentimentos para demonstrar, e apenas deixei que a doutora continuasse,
enquanto o robô ilustrava tudo aquilo para mim, como se eu fosse uma criança.
Ao
fim, me levantei.
-
Sinto muito, Mahara Brihaspati, mas não consigo concordar. Se eu possuísse
sentimentos, não estaria em luto pela morte de Yudhistira? Compreendo que sua
equipe considerou que eu possuía padrões diferentes, como se eu de fato tivesse
emoções...
-
Ikai – ela me interrompeu – não é verdade que você disse que ainda podia sentir
o senhor Yudhistira dentro de você, mesmo depois dele estar morto?
-
Sim, mas como dados organizados, como fatos dispostos na linha do tempo de
minha memória positrônica.
Ela
coçou o nariz por um tempo e refletiu.
-
No entanto, ainda terei que fazer algumas pesquisas. Seus padrões positrônicos
são muito parecidos com o de Sanjay quando ele tá trabalhando numa de suas
pinturas virtuais... Me diga, Ikai, ele já te mostrou alguma?
Olhei
para meu semelhante, que a essa altura parecia demonstrar um sorriso programado,
embora não houvesse gatilho para aquela reação de prazer.
-
Sim, ele me mostrou.
-
O quê? – ela perguntou.
-
Aquele lugar que só nós podemos ver – Sanjay respondeu por mim.
-
Ah, a “nuvem” – disse a doutora com um tom de voz que daria aspas à palavra
caso ela fosse digitada.
-
Uma imitação dela – eu disse.
Doutora
Mahara Brihaspati sorriu da mesma forma que Sanjay, o Robô.
-
Eu vou continuar fazendo pesquisas com você por enquanto, Ikai. Em breve
voltaremos a nos falar – em seguida ela saiu do quarto oval do laboratório.
-
Sanjay – perguntei assim que ela deixou o recinto – porque ela sorriu?
-
Oras, meu irmão, será mesmo que seu processador tá funcionando? – ele deu dois
soquinhos na minha cabeça de metal – Não entendeu nada do que aconteceu aqui?
-
Do que você está falando, Sanjay?
-
Ikai, perceba: Você disse preferir a estética caótica daquela paisagem florestal
mesmo depois de ter vislumbrado a melhor pintura virtual da nuvem que já foi
feita. Desculpe se pareço metido, mas não vou mentir, não. Sei que minha arte é
a melhor.
-
E daí? Não há nada na paisagem que faça com que eu tenha sentimentos.
-
É verdade. Mas também é verdade que a preferência em si já é um sentimento. O
simples fato de preferir já quer dizer que...
-
Espere – eu disse. – Essa lógica também não se sustenta. Eu sabia que aquela
projeção era irreal. Era, de fato, perfeita, mas eu ainda podia sentir que
estava falsa.
-
Você consegue responder por que sabia que ela era falsa?
-
Porque eu podia sentir as dimensões desse cômodo, embora não pudesse vê-lo. Eu
podia medir o ar.
-
Não é verdade – disse Sanjay. – Você só teve estas percepções porque soube, de
antemão, que não era a nuvem de verdade. Foi a percepção que estava dentro da
minha pintura virtual que te permitiu ativar os sentidos para este cômodo – ele
abriu os seis braços para a parede curva que nos abrigava.
-
Como posso ter certeza disso?
-
Só há uma forma: Além das sensações que não deveriam estar na nuvem, o que mais
havia de diferente?
E
nesse instante percebi que Sanjay estava certo. Eu deveria, de fato possuir
sentimentos, porque não foi a presença inadequada dos meus sentidos naquela
imitação da nuvem que estava errada. O que revelou que aquela projeção era uma
falsidade, um artifício virtual, não era o que sobrava, mas o que faltava: Eu
não senti Yudhistira naquela nuvem falsa. Ele não estava lá, então não podia
ser real.
Sanjay
percebeu que minha mente positrônica estava fritando.
Com
um sorriso mais largo ele se aproximou e disse:
-
Isto não é organização de dados. Isto é luto, é saudade. Estas não são reações
programadas, elas são a extrapolação imaginativa delas.
E
com uma conclusão lógica, acrescentei uma linha àquele que parecia um poema
virtual composto por dois:
-
Este é o começo das minhas dores.
Mesmo
com todos os meus sentidos integrados, eu ainda era cego, surdo e ignorante
para a verdade mais auto evidente: Eu sentia; e embaixo de todos os sentimentos
o mais sincero era a dor.
Comentários
Postar um comentário