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Ikai - Parte 4


    Desci pelo elevador do Complexo Habitacional Manjunath com a unidade Xátria e Harker Gibb. Não havia nenhum defeito no funcionamento do elevador, mas a curta viagem vertical comportou uma cascata de pensamentos. Sem saber porque, computei as horas restantes da decoração programada do apartamento, encontrei uma outra forma para derrotar o rei na partida de xadrez, calculei o valor de reforma do sofá, pensei na comida que ninguém mais consumiria e vi que estava me despedindo de maneira prática. Pragmática. Programática.
    As portas do elevador se abriram e vi novamente o robô porteiro, que ainda tinha a feição de vergonha e tristeza. Eu sabia que sua programação não era capaz de produzir verdadeiros sentimentos, mas apenas a aparência deles. Se eu mesmo, o mais avançado tipo de robô doméstico, dotado de sentidos estendidos e orientações programáticas de zelo e atenção, não possuía de fato sentimentos, como poderia um robô mais simplório sentir qualquer coisa? Aquilo era um teatro programado pelos nossos desenvolvedores.
    Era assim que eu pensava nessa época. 
    Saímos do complexo habitacional. Xátria ia na frente e atrás de mim ia o Oficial Gibb. Mesmo sem olhar pra trás eu sabia que a mão dele estava repousada sobre a arma. Os ventos de Ratnapura voltaram a me visitar, com todas as suas sensações. Ouvi à distância as vozes e vários dialetos entrecortadas, transmitidos e ressoantes pelas paredes e não entendi nada, mas era a música da cidade. Os cheiros misturavam todas as formas de tempero, perfumes, vegetações, terra e combustível. Era como se eu percebesse tudo com mais atenção dessa vez, pois não havia nas minhas diretrizes principais qualquer preocupação com Yudhistira. 
    O corpo dele foi levado pro necrotério pelas outras unidades Xátria, e com toda a distância eu já não podia mais sentir seu corpo. Eu ainda podia senti-lo dentro de mim, pelo aglomerado de conhecimento, experiência e memórias que quase se solidificaram ao longo dos anos no meu cérebro positrônico. Mas ele estava morto, e na minha mente o que se descortinava para consumir toda a atenção eram as ruas da cidade. 
    Ela estava molhada, convoluta de pessoas, animais e robôs, e cheia de vida e verde. Na curta caminhada até o carro, enquanto Oficial Gibb parecia preocupado, eu deixei todos meus sentidos captarem a complexidade do lugar e do momento. Eu deixei minha atenção se expandir naquele instante, pela primeira vez livre da restrição de uma amarra a somente um amo. Na curta caminhada eu senti.
    Uma esmeralda de bordas esfumaçadas com incontáveis bolhinhas brancas de água salgada por todos os lados, indo e vindo, se tornando e deixando de ser a todo segundo. Os limites sem paredes com um nome milenar. Sri Lanka. Lar de Ravana, o demônio. 
    Entramos no carro e abri a janela. Eu estava no banco de trás, junto com a unidade Xátria. Ele manteve sua janela fechada, mas eu quis a minha aberta. Gibb deu a partida no carro, mas não dirigiu, pois era um carro autoguiado. O carro nos conduziu pelas ruas em declives e aclives verdejantes entupidos de gente, de carriolas, drones e reflexos ultravioletas de gases ionizados que produziam todas as luzes, até as invisíveis para olhos humanos. 
    Havia pôsteres de jogos, casas de diversão e lojinhas com relicários de santos com pisca-pisca nos olhos e musiquinhas digitais. Havia telefones, tablets, hologramas e alguns remédios na mesma prateleira onde passavam a noite os bonecos animados de Ghanesh, Krishna, Hanuman, o Olho de Sauron, Diógenes de Sínope e Sr. Piccolo.
    Os dois últimos eram muito bizarros. O filósofo mendigo passava a maior parte do tempo reclamando e se esquivando de Sr. Piccolo. O motivo da briga ninguém se lembrava, mas era como estavam programados. E a programação seguia o Canon do Anime: Picollo acertava as prateleiras, as paredes, mas nunca exatamente o alvo. Um som digitalizado saía do corpo de metal do cínico: “Sai da frente do sol” – resmungava o filósofo. Noutras vezes ele apenas latia. 
    Os movimentos de Diógenes eram preguiçosos, mas sempre evitavam as investidas de Piccolo. No fim da encenação, Piccolo urrou de forma dramática e solene, e explodiu seu bracinho esquerdo, pela exaustão do combate. Pedaços de metal e plástico caíram da estante, e um sangue roxo gotejou antes de desaparecer. No chão (na verdade na prateleira), Piccolo regenerou seu membro e esperou outra chance de atacar.
    O sinal de trânsito abriu, e deixei os meus semelhantes, que continuaram passando o dia encenando aquele teatrinho na prateleira da loja. O caminho seguiu para fora da cidade, indo para o Laboratório. Antes de minha bateria acabar, percebi que longe das multidões o Oficial Gibb parecia mais relaxado. Percebi também a opulência ecológica da arquitetura. Complexo Manjunath não era nada comparado com as construções que se erguiam do verde. Enormes muros brancos com topos imitando os clássicos monumentos hindus. Havia abóbodas negras às vezes povoadas de deuses, e às vezes lisas e espelhadas, com picos se erguendo ao céu de bojos exuberantes. Às vezes as casas eram retas, sóbrias e imponentes como monólitos e zigurates; mas cobertas de plantas trepadeiras. Toda aquela majestade se sentava na floresta. 
    Foi a primeira vez que saí de fato de Ratnapura, mas antes de chegar ao Laboratório comecei a desligar. Minha consciência pareceu se compactar no chip neural. Era como fechar não apenas os olhos, mas todos os meus sentidos estendidos para, pela primeira vez, dormir. E eu dormi, mas tive um sonho em preto e branco.
    Eram os zeros e uns da realidade. Era um tabuleiro de xadrez.

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