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Ikai - Parte 3



O zíper fechou o rosto de Yudhistira e o corpo embalado em saco plástico foi preparado enquanto o Oficial Gibb terminava o relatório em seu tablet.
- Unidade de policiamento Xátria 2, você está designada a acompanhar a Unidade doméstica Ikai para o Laboratório, pra recarregar a bateria, limpeza, lanternagem e a porra toda antes do leilão público. Demais unidades Xátria, procedimento padrão para óbito sem familiares reconhecidos. Oficial Harker Gibb, protocolo de comando 523904.
Os chips neurais de todos responderam, enquanto o meu ainda despendia energia para tentar conectar-se a Yudhistira, dentro do saco de cadáveres. Eu ainda podia sentir o cheiro do sangue, da morte dele, mas também percebia as infinitesimais transformações, como se a vida ausente daquele corpo se transformasse em outras.
- Você tá bem, Ikai? – o oficial me perguntou enquanto analisava de perto meus olhos de robô.
- Sim, oficial Gibb.
- Pensei que já tivesse descarregado. O que foi? – a interrogação dele acompanhou a direção da minha visão e pesou sobre o corpo de Yudhistira.
- Ele está morto.
- Sim... – Oficial Gibb coçou a barba e esperou alguns segundos. Percebi seu cenho franzido.
- Oficial Gibb, eu ainda posso senti-lo. – a resposta dele foi silenciosa, mas altíssima. Um suspiro. Impaciência? Descrença? Resignação?
- Ora bolas, que grande merda.
- Perdão, oficial?
- Escute Ikai, há um novo protocolo de investigação que não deveria existir, por ser baseado numa mentira. O problema é que, apesar de ser uma idiotice sem tamanho, eu sou obrigado a seguir essa besteira.
- Não compreendo.
- Exatamente. Mas vou explicar: uma engenheira paquistanesa resolveu ignorar todos os séculos de ciência robótica e epistemologia e desenvolveu um novo critério para a determinação do que é inteligência artificial plena. É uma imbecilidade, uma fantasia romântica.
- Perdão oficial Gibb, não consigo perceber como uma coisa tem a ver...
- tem a ver – interrompeu o policial – porque você disse que ainda sente o... o...
- ...o senhor Yudhistira.
- Sim, o Yudhistira. E essa fábula de desinformação transformada em protocolo investigativo no Sri Lanka é exatamente baseada nisso: qualquer demonstração de afeto por parte do robô.
- ...
- Não me julgue, robô. Essa terra sempre foi dada a sentimentalismos.
- Oficial Gibb, vamos seguir logo como isso, - eu disse – nós dois sabemos que minhas percepções estendidas nada tem a ver com sentimentos.
Harker Gibb sorriu e pareceu relaxar. Acionou gravação de voz em seu Tablet e começou a falar.
- Maravilha. Unidade doméstica Ikai, Informe: como morreu seu último dono, senhor Yudhistira?
- Você mesmo viu na filmagem, oficial. Suicídio.
- E porquê?
- Não saberia dizer, senhor.
- E Yudhistira está de fato morto?
- Sim.
- No entanto a pouco você disse que ainda pode senti-lo. O que quer dizer com isso?
- Sou programado com percepções muito ampliadas se comparadas com os sentidos dos humanos. Essa capacidade permite às unidades domésticas, como eu, analisar as condições de saúde dos proprietários, bem como suas necessidades, potenciais riscos externos, tudo visando o cuidado e tranquilidade.  Quando encontrei senhor Yudhistira morto, ainda senti as mínimas transformações de vida. Ainda...
- Ainda o que, Ikai?
- Ainda o sinto. – olhei para a porta do apartamento 2112.
Harker Gibb pareceu desolado. Ele pausou a gravação e me perguntou enquanto se aproximava mais.
- Ikai, o que você acha da ideia de alma?
- Não acho coisa alguma, senhor.
Ele sorriu e acionou novamente a gravação.
- Ikai, você tem alma?
- Não. Apenas possuo uma programação.
- E eu, Ikai, tenho uma alma?
- Eu não saberia dizer.
- e quanto ao senhor Yudhistira?
Eu soube naquele instante que Harker Gibb esperava que eu dissesse que não, mas não estava na minha programação mentir para agradar a ele. Estava na minha programação mentir apenas para o prazer de Yudhistira. E legalmente ele estava morto, embora ainda pudesse senti-lo. Peguei uma peça de xadrez caída no chão e recoloquei no tabuleiro. Era só um peão. Apontei para o ponto luminoso entre meus olhos, o Bindi que escondia o chip neural, e depois para o meu metafórico coração de titânio, no meio do meu peito.
- Ele tem, e está aqui.
Gibb respirou longamente e com o peso das nuvens de Ratnapura.
- Merda. Unidade Xátria – sua voz cresceu em direção ao robô de policiamento que ainda restava no apartamento – mudança de planos. Eu também irei para o Laboratório.

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