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Ikai - Parte 2


Meus dedos de metal tocaram a superfície do líquido quente, quase preto, que se acumulava perto do pescoço de Yudhistira. Ele não respirava e seu cérebro estava espalhado no chão como uma pintura pós-virtual: Tinha todas as características do estilo de artes plásticas daquele período. O estilo vanguardista era uma negação à tendência anterior, cujas obras de arte eram imateriais. O Virtualismo era um estilo de arte robótica, nascido com a singularidade da inteligência artificial. O pós-virtualismo surgiu logo depois, contrariando todas as regras daquela arte que os humanos consideraram “menor”.
O sangue, miolos e pedaços de ossos espalhados sobre o carpete, com parte do sofá arruinado pelo fogo (agora meio coberto com a espuma do extintor de incêndio) era, sem dúvidas, uma escultura pós-virtual. No ponto de fuga da imagem, a massa cinzenta de Yudhistira, com um alto relevo sangrento e perfumado por ferro e chumbo.
Mas eu ainda podia senti-lo. Não era apenas meu apuro estético, eu ainda sentia minúsculas transformações em Yudhistira. Deixei meus dedos de metal se sujarem de sangue e toquei o rosto dele, que era um rei e um pai para mim, e me despedi, embora ainda sentisse suas microscópicas transformações como um brilho vacilante no meio do mais profundo breu.
- rei...Eu sussurrei.
Pouco tempo depois a campainha tocou, e antes que eu pudesse atendê-la, entraram no apartamento quatro autômatos policiais, um policial humano e o robô porteiro. Embora o modelo do porteiro fosse antigo, com a maior parte de seu corpo revestida de metal, no rosto havia silicone para imitar feições humanas. Mais cedo, ele ria. Agora, sua expressão facial era de total desgraça e embaraço. Ele queria pedir um perdão programático pelas piadas que havia feito mais cedo, mas sabia também que eu era um robô, e por isso nada disso seria necessário. Aquela expressão de desamparo era, na verdade, apenas para os humanos.
-  Puta que me pariu – disse o policial – que desastre, hein?
Ele circundou a potencial cena do crime fumando um cigarro eletrônico e meneando com a cabeça como se fizesse o perfeito trabalho de um detetive. Mas era tudo drama no palco. Quando acabou com sua brincadeirinha pessoal, começou de fato a cumprir o protocolo de investigação. Dirigiu-se ao computador do apartamento e ligou as câmeras de segurança.
- Senhor – eu disse, sem olhar para a tela que o policial observava.
- Pois não, unidade doméstica Ikai?
- Senhor Yudhistira tirou a própria vida.
Sem desgrudar os olhos da tela, ele acenou positivamente com a cabeça. Deu um longo trago, e recostou-se na cadeira. Soltando o ar, respondeu:
- É o que eu tô vendo aqui. E onde você estava, Unidade Ikai?
Apontei para minha cabine de recarga.
- Meu corpo estava desligado.
Ele me olhou intensamente, levantou-se e foi até perto de minha têmpora direita. Na minha nuca o policial humano apertou um botão. Meus olhos viraram para o interior, e na cavidade de titânio um projetor holográfico produziu imagens imateriais que não eram artísticas, mas apenas um amontoado de gráficos e estatísticas.
- Você está desligando, sua bateria tá bem baixa. E sua cabine está destruída. Vou ter que te levar para fazer a recarga e reparos no laboratório central...
- Sim – respondi. – Senhor, qual é seu nome?
- Ahn, Oficial Gibb. Ikai, com a morte de seu proprietário, você sabe o que deve acontecer?
- Segundo o Lei Civil vigente no Sri Lanka, todos os robôs e entes modificados ciberneticamente que possuam o chip neural são considerados propriedade, e portanto todas as leis de herança são aplicáveis.
- Isso mesmo.
- Mas meu senhor Yudhistira não possui família.
- Sim, – disse o Oficial Gibb, agora olhando para seu tablet - é o que eu tô vendo aqui... Ugh – ele gemeu, torcendo o corpo velho, fazendo o pescoço estalar – então isso quer dizer que você vai ser leiloado – ele pôs o tablet na mesa, se jogou de volta na cadeira, deu mais um trago eletrônico, e pegou um copo novo, para se servir com o Uísque do meu velho amo, meu senhor e rei, que agora estava morto, embora eu ainda pudesse sentir um resquício de vida, enquanto os policias robôs limpavam a cena, e embalavam o corpo do rei como um indigente, encaminhado para o necrotério de Ratnapura.

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