Meus dedos de metal tocaram a
superfície do líquido quente, quase preto, que se acumulava perto do pescoço de
Yudhistira. Ele não respirava e seu cérebro estava espalhado no chão como uma
pintura pós-virtual: Tinha todas as características do estilo de artes
plásticas daquele período. O estilo vanguardista era uma negação à tendência
anterior, cujas obras de arte eram imateriais. O Virtualismo era
um estilo de arte robótica, nascido com a singularidade da inteligência artificial.
O pós-virtualismo surgiu logo depois, contrariando todas as regras daquela arte
que os humanos consideraram “menor”.
O sangue, miolos e pedaços de
ossos espalhados sobre o carpete, com parte do sofá arruinado pelo fogo (agora
meio coberto com a espuma do extintor de incêndio) era, sem dúvidas, uma
escultura pós-virtual. No ponto de fuga da imagem, a massa cinzenta de
Yudhistira, com um alto relevo sangrento e perfumado por ferro e chumbo.
Mas eu ainda podia senti-lo. Não
era apenas meu apuro estético, eu ainda sentia minúsculas transformações em
Yudhistira. Deixei meus dedos de metal se sujarem de sangue e toquei o rosto
dele, que era um rei e um pai para mim, e me despedi, embora ainda sentisse
suas microscópicas transformações como um brilho vacilante no meio do mais
profundo breu.
- rei... – Eu sussurrei.
Pouco tempo depois a campainha
tocou, e antes que eu pudesse atendê-la, entraram no apartamento quatro autômatos policiais, um policial humano e o robô porteiro. Embora o modelo do
porteiro fosse antigo, com a maior parte de seu corpo revestida de metal, no
rosto havia silicone para imitar feições humanas. Mais cedo, ele ria. Agora,
sua expressão facial era de total desgraça e embaraço. Ele queria pedir um
perdão programático pelas piadas que havia feito mais cedo, mas sabia também
que eu era um robô, e por isso nada disso seria necessário. Aquela expressão de
desamparo era, na verdade, apenas para os humanos.
- Puta que me pariu – disse o policial –
que desastre, hein?
Ele circundou a potencial cena do
crime fumando um cigarro eletrônico e meneando com a cabeça como se fizesse o
perfeito trabalho de um detetive. Mas era tudo drama no palco. Quando acabou
com sua brincadeirinha pessoal, começou de fato a cumprir o protocolo de
investigação. Dirigiu-se ao computador do apartamento e ligou as câmeras de
segurança.
- Senhor – eu disse, sem olhar
para a tela que o policial observava.
- Pois não, unidade doméstica
Ikai?
- Senhor Yudhistira tirou a própria
vida.
Sem desgrudar os olhos da tela,
ele acenou positivamente com a cabeça. Deu um longo trago, e recostou-se na
cadeira. Soltando o ar, respondeu:
- É o que eu tô vendo aqui. E
onde você estava, Unidade Ikai?
Apontei para minha cabine de recarga.
- Meu corpo estava desligado.
Ele me olhou intensamente,
levantou-se e foi até perto de minha têmpora direita. Na minha nuca o policial
humano apertou um botão. Meus olhos viraram para o interior, e na cavidade de
titânio um projetor holográfico produziu imagens imateriais que não eram
artísticas, mas apenas um amontoado de gráficos e estatísticas.
- Você está desligando, sua
bateria tá bem baixa. E sua cabine está destruída. Vou ter que te levar para
fazer a recarga e reparos no laboratório central...
- Sim – respondi. – Senhor, qual
é seu nome?
- Ahn, Oficial Gibb. Ikai, com a
morte de seu proprietário, você sabe o que deve acontecer?
- Segundo o Lei Civil vigente no
Sri Lanka, todos os robôs e entes modificados ciberneticamente que possuam o
chip neural são considerados propriedade, e portanto todas as leis de herança
são aplicáveis.
- Isso mesmo.
- Mas meu senhor Yudhistira não
possui família.
- Sim, – disse o Oficial Gibb,
agora olhando para seu tablet - é o que eu tô vendo aqui... Ugh – ele gemeu,
torcendo o corpo velho, fazendo o pescoço estalar – então isso quer dizer que
você vai ser leiloado – ele pôs o tablet na mesa, se jogou de volta na cadeira,
deu mais um trago eletrônico, e pegou um copo novo, para se servir com o Uísque
do meu velho amo, meu senhor e rei, que agora estava morto, embora eu ainda
pudesse sentir um resquício de vida, enquanto os policias robôs limpavam a
cena, e embalavam o corpo do rei como um indigente, encaminhado para o
necrotério de Ratnapura.
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