Passo após passo: um ritmo. Uma
caminhada despejando som como a fúria aquosa de Indra, como trovões em
peregrinação. Eu abro os olhos. Estou sobre um elefante vendo as ruas de
Ratnapura; elas já estão úmidas, embora a chuva ainda esteja pendurada no céu. O
elefante sacode em seu próprio compasso, mas tem os passos guiados. Não por
mim, mas por um poderoso chip neural implantado entre seus olhos. Uma espécie de carenagem protege o chip na cabeça do animal e o aprisiona em sua casta: Ele é um robota, embora não seja um robô. Ele é um escravo, e está me
conduzindo.
Eu fecho os olhos e ainda ouço o
ritmo; sinto a chuva que começa a penetrar minhas vestes alaranjadas. A cidade
tem cheiro de curry, óleo de carro, e – quando as gotas atingem o chão – terra
e asfalto. Meu olfato percebe até o plástico escondido em todos os recantos
dessa cidade. Percebo as pessoas em suas trajetórias e evidências minúsculas.
Um florista tira a estande da rua protegendo as flores; ele tem enfisema e sei
disso pela forma como ele respira. Uma mulher uniformizada apita. Os riquixás,
motos, bicicletas e animais de transporte obedecem. Ela se demora observando
crianças que atravessam a rua, e seu coração tropeça. A chuva se torna mais
forte, e eu ainda sinto a presença de todas essas memórias. Eu fecho os olhos.
Quando abro, estou numa caverna
sozinho sentado em frente a um espelho negro. Minhas partes estão enferrujadas,
meus circuitos positrônicos brilham com menor força. Eu sou um robô, mas não
sou um robota. Não há esforço pra
recordar o passado. Ele está aqui, como também o porvir. Estou em todos os
momentos. Quando estava sentado no dorso do elefante, ainda tinha a mente
obstruída. Por entre meus olhos um cordão invisível se estendia para obrigações
programáticas. Meus sensores captavam as condições de saúde de todos ao meu
redor, embora minhas obrigações não se dobrassem a qualquer um. Elas se dobrava apenas ao rei.
Depois do apito o trânsito voltou
à sua costumeira convulsão. Buzinas, suor que se misturava com a chuva,
perfumes, cheiro de pimenta, talco, óleo de cozinha, elefantes e o ritmo de
folhas suportando gordas gotas de chuva. Quando a chuva começou a cessar
avistei o palácio do rei: Complexo Habitacional Manjunath. Era na verdade um
prédio de classe-média. Mais da metade dos apartamentos estava vazia porque
alguns meses antes um incêndio tomara conta de dois apartamentos, tirando a
vida de um senhor de 67 anos. A notícia se espalhou pela internet, e por alguns
segundos os olhos do mundo se voltaram para o Sri Lanka. Alguns meses depois,
ninguém ligava mais para o caso, e os que fugiram do Complexo Habitacional
Manjunath encontraram novas moradias; e os que ficaram simplesmente continuaram
com suas vidas. Ao passar pelo portão, entretanto, ouvi a mesma “piada” sobre o
rei.
- Boa tarde, Ikai.
- Boa tarde, senhor porteiro – o
piadista era um robô-porteiro cuja programação o obrigava a ser insistentemente
engraçado (Isto é, para os padrões humanos. Padrões estes que eu mal
compreendia nessa época).
- Como vai o senhor Yudhistira?
Ainda no alto da torre, se escondendo no castelo?
- Você sabe como ele é, senhor
porteiro – fiz um sorriso com minha boca de silicone e meus músculos de metal –
Não gosta de sair de casa.
- Um dia vão queimar o castelo –
disse o porteiro – E ele vai queimar igual a um monge vietnamita.
A piada não tinha graça nenhuma –
descobri posteriormente que nem mesmo para os padrões humanos. Mesmo assim o
porteiro soltava jatos esbranquiçados, parecendo uma antiga locomotiva enquanto
imitava uma risada humana. A “piada” era na verdade uma observação bastante
apropriada. Não duvido que como um papagaio o porteiro tenha ouvido isso de
algum morador, ou ex-morador, sobre o senhor Yudhistira e agora repetia
conforme fora programado pra fazer. Certamente a pessoa com quem este morador,
ou ex-morador, estava falando riu em resposta ao passarem pela portaria, e o
robô registrou como uma piada bem-sucedida.
Fato é que alguém algum dia riu
dessa piada sobre meu então-amo, Senhor Yudhistira, “o rei”. Ele era velho,
cheio de manias e jamais saía de casa. Ratnapura era seu mundo. Complexo
Habitacional Manjunath era tudo o que ele conhecia. Seu apartamento era sua
realidade.
Desfiz o sorriso programado,
segui até o elevador, entrei e olhei pelas janelas de vidro do lado de fora do
prédio. O elefante com mecanismos na cabeça ainda estava lá. Por um segundo nos
fitamos e então as portas do elevador se fecharam. Subi pelas entranhas de titânio
e intenção racionalizada do prédio Manjunath. As portas se abriram, conforme
programadas, e então fiz uma saudação em agradecimento à minha semelhante
máquina, e só depois fui para o apartamento 2112.
A porta se abriu e o ar se
transformou em algo palpável. Ainda posso sentir o toque envelhecido daquele
lugar perpetuamente fechado. O pouco movimento era um raspar, uma peça de
xadrez se movia no tabuleiro. Andei pelos azulejos, carpete e polímero do
apartamento, guardei as compras na cozinha, e me sentei de frente à Yudhistira.
Ele ainda estava na mesma posição, desde que eu saíra para o mercado. Os olhos
dele estavam pendurados sobre o tabuleiro como a chuva sobre Ratnapura. Ele
moveu aquela peça com muita tranqüilidade, confiante. Em L, o Cavalo Branco
ameaçou o Bispo Preto. Sem demora, respondi, trazendo o bispo para uma posição
distante, ameaçando o Rei.
- Merda – ele respondeu.
Sorri um sorriso programado. Ele
apoiou as duas mãos na mesa e se levantou deixando as peças como estavam. Eu
permaneci sentado enquanto ele ia até a janela, acendia um cigarro e deixava as
cinzas caírem cuidadosamente do lado de fora, como se tirasse proveito de um
incêndio.
- Você venceu mais uma vez – ele
disse – não tem como vencer de um cérebro positrônico.
- Na verdade.... – eu disse, mas
fui interrompido com um quase grito:
- Não tem como te vencer com o meu cérebro, Ikai! Tenho certeza que
você enxerga várias alternativas pra essa situação, - ele apontou o tabuleiro
com o cigarro, mas as cinzas não tocaram o chão – mas eu não consigo enxergar. Eu
nunca vou conseguir te derrotar.
Então Yudhistira levou o cigarro
à boca e seus olhos se tornaram intensos atrás da fumaça. Ele disse:
- Você tem que me derrotar.
Eu me lembro de olhar para o
tabuleiro e travar. Lembro de enxergar todas as possíveis estratégias, as
fugas... mas eu estava travado. Meus dedos de metal se levantaram, e tocaram o
rei preto, o rei que eu controlava.
- Não ouse... – disse Yudhistira,
mas dessa vez foi o som da peça sendo derrubada no tabuleiro que interrompeu.
- De novo, você fez isso de novo.
Por que você joga a toalha quando pode me derrotar?
Cinzas caíram no azulejo preto e
branco da cozinha. Eu sorri um sorriso que não era programado, mas era
estratégico.
- Por que você é o rei –
respondi, enquanto me levantava para limpar o chão. – Além do mais, é chegada a
hora.
- É hoje?
- Sim. Comprei tudo que você vai
precisar para a próxima semana. Eu ainda tenho duas horas e sessenta e nove
segundos ligado, precisa de alguma coisa?
Yudhistira foi até o tabuleiro,
ainda com o cigarro aceso entre os dedos, portanto coloquei um cinzeiro
estratégico ao seu lado. Ele levantou o rei preto da posição de desistência e
falou.
- Uísque.
- Senhor, eu já tinha feito uma
concessão quanto aos cigarros...
- Foda-se, Ikai. Pegue a garrafa
de uísque ou deixe que eu mesmo pego quando começar o seu stand-by.
Obedeci, embora minha programação
criasse vários alertas de danos à saúde de meu amo. Quando ainda era um mero
robô de companhia minha diretiva principal era o cuidado para com a saúde de
meu “proprietário”. Entretanto, essa diretiva não poderia entrar em conflito
com o princípio do livre-arbítrio orgânico, então toda vez que Yudhistira
acendia um cigarro ou bebia álcool eu não podia impedi-lo, porque ele era livre
e eu apenas programado.
- O uísque vai me ajudar a achar
uma saída. – ele falava olhando pro tabuleiro. – talvez o cérebro humano
precise de malte de segunda pra se tornar positrônico.
Em seguida andei pelo apartamento
tocando as paredes e programando-as para as próximas semanas. Yudhistira era um
rei desleixado e não se preocupava com arrumação ou conforto, então essa acabou
se tornando uma das minhas preocupações. As paredes responderam ao meu toque e
acenderam. Escolhi papéis de parede de céus noturnos para o apartamento, e selecionei
a opção de móveis minimalistas. As paredes e os objetos grosseiros de todo o
apartamento responderam, se tornando sofás próximos ao chão, futons, tapetes e
constelações. Tudo isso para deixar o apartamento da forma como Yudhistira
preferia, mas sem dar qualquer trabalho para ele. Pelas próximas semanas ele
teria conforto.
Andei até a cabine de recarga e
entrei. Minha ancoragem metálica e elétrica começou a entrar em hibernação,
enquanto toda a minha energia era concentrada entre meus olhos, no neurochip.
Os cabos na cabine que se ligaram ao meu corpo metálico eram apenas uma parte
da transmissão de consciência positrônica, e muito da minha estrutura deslizou
como uma nuvem dourada de informações para o digital. Quando as barreiras da
rede foram transpostas, eu, Ikai, podia perceber claramente a divisão entre a
matéria do meu corpo e minha consciência virtual. O que eu chamava de eu
flutuava, enquanto minha ancoragem metálica dormia. Mesmo assim, de minha
posição abstrata de códigos rarefeitos eu ainda sentia a energia contida entre
os olhos do meu corpo. Eu também estava lá.
Minha mente subia em
não-movimento por um não-espaço. O “lugar” era mera abstração lógica. Os
humanos possuem termos simplistas pra esse tipo de transmissão, pois no passado
todas as informações que transitavam numa nuvem não tinham consciência de si
mesmas, enquanto eu deslizava compreendendo o “upload” como uma visita
singular. Os códigos e dígitos se conformavam de acordo com minha programação
primária, e eu me afastava do meu corpo esticando uma corda do ponto entre meus
olhos como o Fio de Ariadne. Lá de cima eu via o absoluto nada da nuvem, e
havia outros Fios de Ariadne que se estendiam pela imensidão, mas estavam muito
distantes.
Era, na verdade, a totalidade daquele mundo virtual, pois esta nuvem sempre
esteve separada da internet. Dessa forma era possível evitar que os robôs que estivessem
em estado de hibernação fossem hackeados. Mas o quê não foi calculado pelos
humanos é que nós, os robôs, pudéssemos dar forma a esse vazio. Foi assim que
nasceu a Nuvem Autônoma de Virtualidades. Eu me lembro de deslizar, me lembro
de não compreender e ter curiosidade quanto aos outros Fios de Ariadne no
Horizonte. Mas houve uma pausa. Uma interrupção forçada. Um despertar brusco.
Uma gota se formou no céu virtual
– essa gota era eu. Essa gota se encheu de fúria como uma tempestade de Indra
sobre o céu de Ratnapura, mas eu ia chover sobre meu próprio corpo. Um
despertar forçado. Meus dados se reorganizaram e começaram a se preparar pra
queda. Pela Nuvem eu caí, despenquei de volta ao metal, de volta ao corpo, furioso.
Algo estava muito errado.
Abri os olhos. Eu ainda estava na
cabine de recarga, mas não podia ver o lado de fora. O vidro da porta parecia coberto
por um lençol branco. Sinais luminosos e sonoros indicavam o caos. A cabine não
respondeu ao meu comando, então tive de forçá-la. Soquei três vezes, e o lençol
branco se transformou em fumaça e invadiu a cabine. Soquei mais duas vezes, e
consegui afastar as portas, que abriram apenas parcialmente. Arranquei os cabos
do meu corpo e saí da cabine para entrar na fumaça do incêndio.
Fui em direção ao fogo, que tinha tomado conta
de metade do sofá. Corri para o extintor de incêndio e procedi conforme
programado. Em questão de segundos eliminei o fogo.
Yudhistira jazia no chão, ao lado
do sofá arruinado. Ele estava imundo, meio ensopado e com o rosto afundado no
chão. Próximo a ele estava uma garrafa de uísque, cigarros destruídos, um
cinzeiro quebrado, assim como o seu maxilar. Próximo à mão esquerda,
entretanto, algo que eu nunca tinha visto dentro do apartamento 2112. Uma
pistola.
Meus sentidos se inundaram de
protocolos e consternações programáticas. Lembro de ter minha visão embaçada
por avisos, meus movimentos travados pelas muitas obrigações. Em choque. Essa é
uma expressão muito mais apropriada para Robôs do que para humanos – eu estava
em choque, e Yudhistira estava morto. Eu sentia o calor e o cheiro mineral do
projétil. Eu sentia o calor e o cheiro de ferro no sangue empoçado.
CARALHO MEU IRMÃO QUE SENSACIONAL
ResponderExcluirHahahaha! Cara, que isso! Mas muito obrigado por ler, e que bom que gostou
ExcluirNossa, gostei do estilo da escrita! O início eu tive um pouco de dificuldade em entender, mas depois entrei fácil no mundo que você criou!
ResponderExcluirObrigado, Carol!
ExcluirGenial!
ResponderExcluirnossa, obrigado!!!
ExcluirOi Pedro, comecei pelo Ikai 6 e precisei vir procurar o primeiro.
ResponderExcluirMagnífico...
Mas há alguns detalhes do texto, em especial, que eu adorei.
Um abraço.
Olá! Agradeço muito pelo comentário. Em breve posto mais!!
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