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Chagas (ou Carta de Amor a Kafka)


 A casca gelatinosa começou a se romper com as inevitáveis luzes. O que me dividia do mundo era fino e fértil, e quando eu rompi o ovo senti o vento cobrir meus anéis. Arrastei o corpanzil pelo chão enquanto comia, e senti que eu estava mudando. À minha volta vários voavam, mas eu ainda estava presa ao chão de carne e sangue. Eu precisava crescer, precisava ganhar asas, ganhar vontade. Sem esses poderes, eu ainda era só uma larva na carne, e a carne era a comida. 
 Entre os arrastares, eu aprendi sobre a vida inteira - A vida é o alimento.
 Esperar era quase como dormir. Sem esperar para acordar, pois tudo o que eu conhecia desde sempre estava ali. Eu cresci gorda, como uma larva gorda, como um bebê gordo. Como se espera que cresça quem acabou de nascer. Mas eu já estava mudando.
 Quando senti os olhos secos, os molhei com a língua e uma pata cavernosa. Tudo que eu via agora passava pelas mil lentes dos meus olhos. As minhas asas como rotores sônicos me impulsionavam para todas as direções de uma forma que eu nunca tinha visto. Quando me ergui com outras moscas, vi o mundo se descortinando à frente e acima, infinito e renderizado em fractais. Voei enquanto o tempo passava devagar.
 Mas a clareza que tive foi recebida depois de beber o alimento. Essa foi a verdadeira metamorfose.      Enquanto sorvia o sangue, eu pensei ter pensado. Pensei ter sonhado, e me enchi de ideias além de mim, sorvendo uma imaginação que podia tremer no ar. Eu estava tremendo. Das chagas enchi meu abdômem com aquela coisa escarlate e, sem querer, bebi ideias. A mente estava no que bebi, e quando voei alto para além de meu berço de chagas e hemorragia, acordei de sonhos tranqüilos para me ver transformado. 
 Quando acordei, eu era um cadáver.

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