Aos
doze anos de idade Bruno sonhou com sua mãe enquanto ela morria. No sonho ela
usava um vestido laranja e estava de mãos dadas com um homem que tinha a pele
azul-escura. O homem estava tranquilo, mas prendia com força a mão dela enquanto
a levava para o fim de uma rua de uma cidade noturna.
Esse
era o sonho: Sua mãe indo embora levada por um homem cuja silhueta se misturava
com o escuro e desaparecia. Até a cor vibrante do vestido perdia a saturação e
o brilho com os passos em direção à noite.
Mas
mesmo separado por seis mil quilômetros e pelo sono, Bruno alcançou a mão livre
de sua mãe e a segurou. Não deixaria que o homem azul-escuro a levasse para o
outro lado, não enquanto pudesse resistir. Bruno puxou. Trouxe com força a mão
dela pra perto, sem se importar que fosse levado junto. Não se separaria dela,
não enquanto pudesse lutar. Mas era apenas um garoto de doze anos de idade,
dentro de seu próprio sonho. O ceifeiro azul não desistiu, e dando um passo
adiante fez com que o corpo dela se rompesse ao meio como um balão que
encontrou um alfinete. Sua pele sacudia como papel num furação. A mão dela ficou
frouxa e sem substância entre os dedos de Bruno.
No
sonho a explosão não tinha som. Havia apenas sua mãe se desfazendo fina e
intangível como uma bolha de sabão. Pop!
e se acabou.
Ao
acordar, Bruno não lembrava mais do sonho. Principalmente porque foi acordado
com a notícia do falecimento de sua mãe, e isso o transportou por seis mil
quilômetros de coisas por fazer e aflições. Ele não tinha tempo pra ficar
lembrando de sonhos - o presente era muito real. Ao acordar ele ainda estava
segurando a matéria de sua mãe, como o ectoplasma de uma lembrança. Mas até
isso ele se esqueceu, pois havia um velório pra comparecer e uma nova vida com
a qual se acostumar.
Aos
vinte e quatro anos, Bruno estava de frente para o espelho se barbeando quando
se lembrou. Em menos de meia hora ele tinha que encontrar com a namorada e umas
amigas dela pra ir ao cinema, mas depois de todos aqueles anos, precisava se
concentrar pra entender aquele sonho. O sonho voltou como um relâmpago de outra
galáxia: muitos anos atrasado, mas devastador de qualquer forma.
Bruno
sentou na privada tentando reunir os pensamentos e olhou para as mãos. Lá
estava aquela pele fantasmagórica rasgada ao tentar impedir que sua mãe fosse
para o outro lado. Ele ainda estava segurando a mão dela. Estaria sonhando
novamente? Ele quis se levantar e olhar mais uma vez no espelho, mas quando foi
tentar, encontrou os azulejos no chão.
Quando
se levantou, Bruno estava dormindo em algum lugar de sua consciência. Seu corpo
e sua memória estavam de alguma forma empacotados, pois no reflexo não havia
mais um garoto atrasado para o cinema. Havia sua mãe, morta e de volta; não
apenas sua memória, mas seu corpo, transformado no lugar onde deveria haver um
filho.
Márcia
olhou para as mãos, fitou o espelho e tocou o vestido Laranja. Ele ainda era
muito bonito. Teve a sensação de que há anos não usava este vestido. Mas havia
algo estranho, pois não se sentia tão bem. Onde ela estava? Os azulejos
pequenos e ensebados daquele banheiro pareciam familiares, mas distantes. Onde
estava? E num flash se lembrou. Era o banheiro de sua antiga casa, a casa de
Humberto e Bruno, seu filho mais velho.
Márcia
tropeçou pela porta do banheiro para o quarto, onde viu tudo fora do lugar.
Procurando não pensar muito, catou as camisetas de Bruno do chão e as dobrou.
Achou as camisetas muito grandes, mas supôs ser algo da moda. Estranhou também
a disposição da mobília no quarto, mas deixou pra lá. Ela mesma ainda se sentia
muito fora do lugar pra poder julgar as coisas dos outros. Saindo do quarto
apoiou as duas mãos nas paredes do corredor e prosseguiu pensando. Pensou em
Bruno, seu filho mais velho. Onde estavam os filhos mais novos? Aos poucos
percebeu que essa era a casa de Humberto e Bruno, e não sua casa. Ela havia se divorciado e casado novamente, com Flávio, e
tinha um casal de gêmeos, Ricardo e Michele. Ao se lembrar disso, estacou. As
palavras rolaram de sua boca sem perceber.
-
O-O q-que eu to fazendo aqui?
De
onde estava ela só podia ver as costas de uma poltrona e a luz da tevê. Oculto
na poltrona estava Humberto, que se virou assustado com a voz. Os olhos de
Márcia encontraram os dele. Ele estava muito mais velho, mais careca, mais
magro também. Ele deixou a tigela de amendoins que segurava cair no chão,
espalhando tudo.
-
Márcia?!
Em
menos de um instante ele estava de frente pra ela, segurando-a pelos ombros e
duvidando dos próprios olhos.
-
Márcia?!
Ela,
atônita, começava a se lembrar de tudo. Os olhos percorreram a casa que não era
sua.
-
Onde estão os meus filhos?! – ela berrou.
-
Márcia! Você tá... Você tá--mas como?
Ela
fitou o envelhecido ex-marido nos olhos. Não entendia nada, e trêmula continuou
falando.
-
Onde estão meus filhos? Cadê o Ricardo, o Bruno e a Michele? Humberto, por que
eu to aqui? Que que tá acontecendo? Por que eu to aqui?
Humberto
a segurava cada vez com mais força, apertando os braços dela contra a caixa
torácica. As mãos dele também tremiam.
-
Você tá viva!
Os
olhos de Márcia se arregalaram e correram por todo o cômodo e se fixaram nos
amendoins no chão. No canto, onde deveria haver um animal, não havia nada, apenas
amendoins. Por algum motivo ela começou a respirar com mais calma e a se
lembrar. Aquele era o cantinho favorito do cachorro. Max. Max Pulguento, um
vira-lata bobão. Mas ele não estava lá. Márcia ficou olhando por um tempo aquele
vazio e; um pouco mais serena voltou o olhar pra seu ex-marido. Ela queria perguntar onde estava o Max, mas
sabia a resposta: ele também havia morrido.
Márcia
abriu a boca para chorar, mas mais uma vez ela se rompeu. A pele ectoplasmática
se rasgou e no lugar surgiu o cachorro. Max apenas ergueu o olhar animado para
Humberto e latiu duas vezes, e logo depois também sumiu. Em seguida apareceu Bruno,
que ainda estava atrasado para o cinema, mas estava deitado dormindo no chão
com a barba malfeita. O pai se jogou ao chão de joelhos e vacilou antes de
tocar o menino. Não importava quanto tempo tivesse passado e quão adulto Bruno
fosse; pra Humberto ele ainda era um menino. Seu menino. Humberto abraçou o
garoto e chorou pelas lembranças e pela confusão.
Desta
vez quando acordou, Bruno lembrava o que tinha acontecido. Ao recuperar aquele
sonho errante ele percebeu que por anos esteve carregando parte de sua mãe. Não
como um fantasma, mas como um conceito. Ele agarrara o tutano da ideia de mãe
viva em Márcia. O resto dela, como pessoa, morreu. Mas aquela parte perfeita e
acolhedora estava com ele. E o cachorro também, mas essa era uma lembrança dela, da mãe. Quando ela surgiu, veio
tirando Bruno de seu lugar na existência. Ele não havia se transformado nela, ele
apenas concedeu seu lugar. E nem precisou dizer “Shazam” ou “Eu tenho a força”.
A lembrança tomou conta do esforço.
Quando
acordou também lembrou que estava atrasado para o cinema. Algo em torno de
quatorze horas atrasado. Bruno sacou seu celular do bolso veloz como Blondie e encarou a verdade: trinta e
duas ligações e várias mensagens no whatsapp. Elas começavam de forma furiosa e
venenosa, cada palavra da namorada reverberando a raiva de levar um bolo. E
nesse caso, pior: com as amigas dela, que nas mensagens “nem eram tão amigas
assim”, só pra deixar a situação ainda mais desconfortável pra ela. A partir da
terceira hora de atraso as mensagens mostravam muito mais preocupação com o
estado dele, do que frustração. Lá pelas últimas ela disse “Amor, pelo amor de
deus me ligue. To tentando falar com vc, mas nenhum numero atende”.
Ela
entenderia no final das contas, pois logo depois de olhar o celular, Bruno
percebeu que estava num quarto de hospital. Bruno não se sentia mal, mas
acordou confuso o suficiente pra se sentir adequado sob os lençóis baratos da
Santa Casa.
Era
manhã. Seu pai estava sentado do lado, lendo jornal. Quando percebeu que Bruno
estava acordando, pôs-se do seu lado e acariciou a testa do rapaz.
-
Bom dia, Bruno. Tudo bem, meu filho?
-
Hã, oi pai, bom dia. Tudo bem. O que que eu to fazendo aqui?
-
Você desmaiou noite passada. É, acho que foi isso que o médico falou.
Bruno
olhou com intensidade para o pai.
-
Sério? Estranho, não me sinto mal. Pai. Tudo bem com você?
-
Comigo? Oras, tudo bem sim, Bruno. Por quê?
-
Nada. Sei lá. Ontem te vi meio trêmulo.
-
Trêmulo?
-
É, quando falou com a mamãe.
As
pálpebras de Bruno começaram a pesar mas deixaram o rosto consternado de seu
pai ser registrado pelas retinas logo antes de voltar a dormir. Quando acordou
era final da tarde e Humberto não estava mais lá. A tevê estava ligada num
canal de esportes e o ar tinha cheiro de perfume. Feminino. Perfume de café
feminino.
-
Oi, princesa – disse Bruno sem abrir os olhos.
-
Oi amor – respondeu Lisa.
-
E ai, Thiago.
-
Tudo bem, amigão? – a mão do melhor amigo tocou o ombro esquerdo de Bruno. Do
lado direito estava a namorada, sem maquiagem, perfumada e com olhos inchados
de chorar.
-
Tudo bem com vocês?
-
Tudo – disse Lisa – Como você tá se sentindo? Quer alguma coisa?
-
Quero. Thiago, tira desse canal aí.
O
amigo desligou a TV.
-
Eu não sei o que eu to fazendo aqui – disse Bruno - Eu só acordei aqui e tenho
umas lembranças engraçadas, mas to me sentindo bem.
-
Foi o que seu pai falou – disse Thiago.
-
É, e me chamou de Márcia – interrompeu a namorada – Tadinho, ficou tão
preocupado com você que até confundiu o meu nome com o da sua mãe.
-
E cadê ele?
- Foi
pra casa assim que chegamos. Ele passou a noite passada aqui, eu falei que ele
podia ir descansar.
-
Melhor. Além do mais, não pretendo ficar muito tempo aqui. Cadê o meu médico? Quando
que eu vou poder ir pra casa?
-
Amanhã – disse Lisa – eu já conversei com ele. Eles querem te manter aqui só
até amanhã pra checar se tudo está bem com você. Acho que vou passar a noite
aqui.
-
Amor, não, não precisa.
-
Eu faço questão. Além do mais, você esqueceu? Temos um encontro. Vamos ver
filmes.
E
com um gesto Lisa tirou da bolsa uma coleção de DVDs que iam do faroeste ao
space opera de locadora pirata. Bravura Indómita ou Barbarella era uma escolha
muito difícil. Optaram por rever Conan: O Bárbaro. Antes do desfecho Thiago
puxou o carro e Lisa começou a cochilar na poltrona ao lado da cama. Bruno
ainda se sentia cansado, como se dormir o dia inteiro não tivesse sido o
suficiente. Mesmo assim não conseguia conciliar o sono e continuou fazendo
companhia para os guerreiros na televisão até que sua mente começasse a divagar
num meio-sono.
Ele
viu enquanto sua namorada se encolhia na cadeira, mas estava de olhos fechados.
Bruno se via como se estivesse pairando sobre seu próprio corpo. Ele via a
televisão ligada, mas todos os seus cinco sentidos estavam dormindo; mas mesmo
assim ele tinha consciência. Um sonho atento, como um deslizar sobre a
eletricidade– não há dúvidas sobre o choque e a dor, mesmo que seja algo
invisível. Da mesma forma era o sonho: desperto, e mesmo assim em profundo repouso.
Bruno
viu seu médico aproximar-se dele. À noite a pele do médico tinha um tom difícil
de discernir, os aparelhos faziam com que ela parecesse azul escura. O médico
tocou o pulso de Bruno, olhou em seus olhos, checou o soro. Depois que o médico
saiu de lá, Bruno se viu transformar.
Não.
Não era transformação. Seu corpo concedia espaço a memórias. Dava lugar à ideia
de mãe, à amizade do cão. O corpo de Bruno também concedeu lugar a novas
imagens. Apareceu como uma cópia da arquetípica namorada – preocupada,
companheira, encolhida na cadeira como parte da vigília. Bruno pareceu
igualzinho a Lisa, e depois também pareceu personagens de livro e televisão –
alguns deles eram pixelizados como no tubo de imagens, outros vinham de
lembranças em HD. Bruno também pareceu seu próprio pai arrependido, solitário e
renascido em Cristo. Tudo por causa de uma visão angelical na sala de estar.
Bruno pareceu seu melhor amigo, Thiago, mas com feições mais novas, quando os
dois ainda tinham muito em comum. Essa lembrança também era carregada de
música: Eram tons polifônicos de Super Metroid – uma das melhores trilhas
sonoras de uma infância feliz. Ao olhar pra si, Bruno percebeu que tinha todas
essas lembranças em suas mãos, como peles ectoplasmáticas destruídas pela força
de seu agarrão. Ele não queria perder nada.
Em
uma respiração, Bruno acordou. Levantou-se e sem pensar foi atrás de seu
médico. Havia algo de muito errado com ele. Ele estava delirando.
Seus
passos o impulsionaram para o saguão do hospital, que se encontrava quieto e
abandonado na luz crepuscular da madrugada. Bruno estava só; centralizado e
perdido em seu próprio retrato de paisagem. Ele se via seminu num hospital, sem
saber pra onde ir. Onde estava o médico de pele azul escura? Os passos
descalços de Bruno o levaram para a rua, onde avistou uma silhueta próxima a um
poste.
Os
passos de Bruno o deslizaram até a figura. Era o cara, o ceifeiro dos sonhos,
misturado no fundo de todas as figuras dos sonhos errantes. Ele tinha a pele
azul.
-
O que eu to fazendo aqui? – Bruno berrou para a deidade.
Em
silêncio o homem estendeu sua mão azul em convite. Bruno apertou-lhe a mão.
-
Pra onde você está me levando?
E
com um olhar e um sorriso o homem começou a responder.
-
Você e seu pai viram suas vidas passarem diante de seus olhos. É hora de ir.
Bruno
entendeu.
-
E o que faço com isso? – ele disse estendendo todas as lembranças na qual se
transformara.
-
Deixe ir.
E
com um gesto de aceitação, os dedos dele se abriram. Caíram todas as pessoas,
os dias, as noites, os planos, e se incendiaram antes de tocarem o chão. No
horizonte Bruno começou a ficar fino como um balão, até explodir na mão do
condutor e se misturar com a noite.
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