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Festa de boas vindas


Às quatro e trinta da manhã Seu Constantino já estava de pé, arrastando os chinelos no assoalho de madeira e indo de um lado pro outro, como seus pensamentos. Seus dentes estavam num copo d’água, e por isso ele não roia as unhas. Não era tanto nervosismo o que ele sentia, mas uma estranheza, como um viajante que acorda num quarto diferente. Neste caso era verdade, pois estava depositado no asilo como uma economia de família, um valor esquecido num banco de gente.
Na noite anterior o enfermeiro havia explicado que os residentes gostam de preparar uma festa de boas-vindas para os novatos. Seu Constantino odiava festas de velhos. A única diferença entre sentar-se sozinho no quarto, ele pensava, era que na festa toda aquela gente velha se reunia num mesmo cômodo, mas estavam sozinhos. Era constrangedor. A experiência de oitenta e sete anos lhe ensinou que nessas ocasiões, a maioria ficava calada, parada, dormindo. Às vezes alguém colocava um Cauby Peixoto “pra dar uma animada”. Não funcionava.
Mesmo assim, o que estava incomodando o velho não era a festa. Isso era apenas um estorvo. O estranho foi como o enfermeiro contou a notícia, em segredo, sussurrando, como se houvesse algum perigo em respirar peidos de senhores e senhoras senis, enquanto o Youtube reproduz músicas que nunca foram remasterizadas. Por isso que Seu Constantino tava de pé uma hora antes do horário costumeiro. Ele queria estar bem acordado na hora que aquele enfermeiro viesse lhe dar os remédios. Queria saber o que ele quis dizer. O que havia de tão especial na festa?
As cinco e quarenta e dois, Seu Constantino o recebeu com “Bom dia” e “você tá atrasado”.
- Bom dia, Seu Constantino – disse o rapaz – é verdade, doze minutos atrasado. Tome aqui seus remédios e um copo d’água. Como foi a primeira noite de sono nas luxuosas instalações da Casa de Descanso Santa Bernadete? O senhor dormiu bem?
- Nem – disse o velho – essa cama é uma porcaria, meu filho. Tinha que ser de hospital mesmo? Essas coisas reclináveis fazem um mal pra minha coluna... E é muito deprimente também.
-Sei – O enfermeiro ouvia atentamente, mas passando por cima do assunto com a desatenção de um profissional.
- Ela é muito alta, me admira nenhum desses velhos cair dela enquanto dorme. Ô rapaz, algum velho já--
- Seu Constantino, se o senhor quiser posso pedir pra trocarem sua cama
- Não rapaz, escute. Sobre a festa que você me falou ontem...
- Tá empolgado, Seu Constantino? – Ele sorria e dava tapinhas nas costas do idoso.
- Tá maluco? Queria ficar dormindo.
- Ué, o senhor já tava de pé!
- Cadê meu remédio pra dormir?
- Haha! Muito esperto.
- Mas sobre essa festa, garoto. Ontem você falou de um jeito... Me diz. Minha família fez alguma coisa constrangedora? Pelo amor de Cristo. Não basta me jogarem num lugar como esse e ainda comemoram. Que vexame...
O semblante do enfermeiro se tornou misterioso e confidente. Ele assumiu o lugar ao lado de Seu Constantino na cama, e em voz baixa continuou.
- Não, Seu Constantino. Muito pelo contrário. Sua família não teve nada haver com isso. É uma tradição dos residentes mesmo.
- É?
- É.
- Uma festa? Com os velhos?
A seriedade ganhou um sorriso na cara do enfermeiro.
- Exatamente.
Seria tedioso – pensou Seu Constantino. Seria um saco.
- Certeza que você não tem aí um remédio pra dormir?
- Não Senhor. E vai por mim, o senhor vai querer estar esperto e acordado.
- Vou, é?
- Pode crer, Seu Constantino. Vai ser demais.
Em seguida os dois passaram por corredores com paredes pintadas de verde claro, como hospitais. Não deixava de ser deprimente, mesmo fora da cama reclinável. As sandálias do velho arrastavam pelo chão fazendo xap-xap e ocupando todo o espaço. Foi na interrupção do barulhinho arrastado que Seu Constantino ouviu um choque e levantou a visão. Era um barulho reverberante, de carne sendo esmurrada. Nos filmes os socos fazem Spóc ou Shtum, mas na vida real o som é mais parecido com o de tapas bem dados com a mão aberta. Spléc é mais apropiado. Ao levantar a cabeça para o som, Seu Constantino também sentiu um cheiro familiar.
- Cigarro? Quem é que tá fumando? - e ao se virar viu o jovem enfermeiro acendendo um Camel.
- Ué, você pode fumar aqui? – perguntou o velho, mas um risinho foi toda a resposta que recebeu.
Os barulhos vinham de uma sala fechada.  O enfermeiro deslizou a porta revelando a festa que, ao contrário do que imaginava Seu Constantino, parecia bem animada. Na esquerda uma senhora de uns noventa anos usando viseira, pochete, óculos escuros e crocs organizava outros idosos numa fila falando palavrões e abanando o rosto com notas de vinte reais. Próximo a ela, mas sentado numa cadeira, um velho de uns oitenta anos alongava os braços. Ele estava usando regata, chinelo havaianas e tinha varizes nas canelas. Apesar delas, ele parecia bem de saúde. Quase poderia se passar por um jovem de setenta, talvez sessenta e oito, não fosse o olhar perspicaz de Seu Constantino. Do outro lado uns enfermeiros tomavam café e davam cigarros para os residentes.
Essa era uma festa diferente, pensou Seu Constantino, e ao passar pela porta todos garantiram que ele estava certo. De início eles apenas olharam para ele e sorriram; depois abriram uma roda e - sem nem oferecer um chá – levaram Seu Constantino até o centro. Seu Constantino ia, sorrindo e desconfortável, sem entender o que estava prestes a acontecer. Ele só entenderia quando estivesse deitado.
O velho de regata se uniu a Seu Constantino no centro da roda. Ele também usava dentadura, mas parecia desconfortável na boca dele, como se ele estivesse usando um protetor bucal.
Seu Constantino só entenderia quando estivesse deitado, deitado no chão. O velho de regata abriu os braços como cristo, como se fosse dar um abraço, e caminhou na direção de Constantino. Sentindo que era o início de uma besteira qualquer da festividade, Seu Constantino imitou a posição, ansioso por dar o abraço, acabar logo com isso e estar logo de volta em seu quarto.
Mas ele só entenderia quando atingisse o chão.
Antes que os dois se encontrassem no abraço, Seu Constantino sentiu um calafrio. O velho de regata o abraçou, e com um giro rápido virou de costas para ele, levantando-o sobre suas costas. Era um golpe, um balão de Judô. Seu Constantino atingiu o assoalho gelado. Deitado, ele entendeu: A festa de boas-vindas era um clube da luta da melhor idade. Um evento desportivo proibido e altamente inconsequente.
Tossindo, Seu Constantino sentiu as vértebras estalarem enquanto voltavam pro lugar. Só assim, pensou, pra ajeitar de uma noite horrível naquela cama de hospital. A dor vinha depois. Levantando entre tossidas e gemidos, todos os olhares caíam sobre si. Seu Constantino mal podia acreditar, mas era isso mesmo. Porrada.
- O que diabos você tá pensan- - e suas palavras foram interrompidas com um soco. Spléc! Pegou errado, no pescoço, mas já tava valendo. Foi o necessário pra Constantino achar dentro de si uma fúria guardada há pelo menos uns 30 anos de palavras-cruzadas e reprises de Porta da Esperança.  Ele se lembrou daquele ano que treinou boxe no exército, e então levantou a guarda à altura do maxilar. O velho de regata sorriu e avançou.
Os dois primeiros socos saíram lentos como socos de velho, mas rápidos para um velho. Seu Constantino esquivava afastando, mantendo o queixo baixo e a cabeça solta para esquivas. Os três socos que o velho de regata disparou em seguida pegaram em cheio, um nas costelas, dois no topo da cabeça, mas Seu Constantino ainda estava de pé. Ao longe uma voz de senhora se fez ouvir:
- um-dois, Seu Estevão, um-dois! Lembra do treinamento.
Mesmo com o aviso, Seu Constantino não foi capaz de antecipar os golpes que eram rápidos como um Chevette. Spléc-spléc! Os socos atingiram a boca e o nariz. A dentadura voou. Seu Constantino cambaleou por uns instantes para trás, mas recuperou o fôlego. Um cheiro de ferro tomava conta do lugar e a cor vermelha pintava o chão em gotinhas. Tentando não pensar no absurdo de tudo, Constantino avançou. Da mesma forma que aprendeu no exército, agora estava preparando para ser surpreendente. No boxe, lembrava, tudo é ao contrário. Se você quer avançar para a esquerda, seu pé gira para a direita, se quer acertar um gancho, é bom você distrair o oponente com um jab. Essa era a ideia de Seu Constantino. Distração.  Ele começou com jabs, socos rápidos que causam pouco dano, mas servem para medir a distância e ocupar o oponente com esquivas erradas. Mas Estevão fora bem treinado. Cada Jab de Constantino era respondido com um rebolar singelo de Estevão, e todos os outros davam risadas. A imitação de Muhammad Ali era ridícula de se ver, menos na posição de Constantino, mais ridículo ainda, parecendo um Sonny Linston com reumatismo.
- Bem vindo. Essa é nossa festa de boas vindas, já tá cansado?
- Nem perto, seu velho.
- Não sou eu quem tá ofegante – disse Estevão, e começou a dar saltinhos – eu vôo como uma borboleta e pico como uma abe-- mas dessa vez foi Constantino quem aproveitou a oportunidade. Ele ainda se lembrava das aulas de Boxe. Não cair no Trash-talk. Não perder uma oportunidade. Como uma locomotiva Seu Constantino se jogou sobre Estevão. O golpe não foi calculado, não foi preciso, mas foi reto, e isso era o suficiente. Foi como um vagão na face de Estevão, que naquele segundo endureceu como uma tábua e foi ao chão.
- Puta que pariu – a voz era do enfermeiro. E – as apostas subiram pra trintão – a voz era da velha de viseira. Isqueiros foram riscados e fumaça de cigarro espalhou-se pela sala. O segundo round iria começar, mas antes Constantino tinha algumas perguntas. O que estava acontecendo? Por que os dois estavam lutando?
Mas ele não entenderia. Nem quando tivesse novamente atingido o chão. Os motivos e as sensações só fariam sentido depois de um ano, quando outros velhos fossem admitidos no asilo e fosse vez de Seu Constantino de dar as boas vindas. Mas o segundo round ainda nem tinha começado, quanto mais passado todo esse tempo. Ele ainda não entendia nada, e não obteve resposta para suas perguntas. O enfermeiro massageava seus ombros.
- Muito bem, Seu Constantino. O senhor tá indo bem. Cuidado com a esquerda, ele tem a pata pesada. Fica esperto, e não se esqueça. Um-dois. Ele vai te atacar usando o um-dois. Sai de perto e arremessa um gancho. Mas tome seu tempo, Seu Constantino. A festa é sua! Você tá aqui pra se divertir. Quando estiver de saco cheio, desmaia ele e vamos pro goró. Mas fica esperto, hein. Um-dois. Não se esqueça – e com um tapa na bunda, Seu Constantino tava de volta ao ringue.  Estevão não estava mais sorrindo.
Alguém colocou uma trilha sonora pra animar, mas não era Cauby, era Eye of the Tiger. Pelo menos os residentes gostavam de filmes bons, e a música realmente animou. Como um Rocky Balboa ou Marciano, Seu Constantino encarava o velho de regatas, Seu Estevão, o seu próprio Apolo Doutrinador, o seu próprio George Foreman, dando saltinhos e se preparando pro segundo round. A velha de viseiras bateu com a bengala no andador duma outra senhora adormecida e o barulho serviu de sino. O segundo round começara. Mas dessa vez a postura de Estevão era diferente. As pernas estavam abertas e separadas, com uma base baixa de Kung Fu. A voz rouca e falha de Estevão imitava Bruce Lee com gritinhos vergonhosos.
Ele nunca acreditou nessas bobagens de Shaolin e dragão. Tudo bobagem. Até isso era cafona. Pensando bem, ele só queria dormir. Mas esse foi seu erro. Pensar em estar de volta ao descanso, para a “Casa de Repouso” onde ele só podia esperar... Essa era a última coisa que Seu Constantino podia fazer durante uma luta. Hesitação já é ruim o bastante. Divagação é pior.
Estevão não perdeu a chance. O primeiro chute lhe acertou na barriga e roubou todo o fôlego. O segundo veio na direção da cara e parou antes do contato, mas a havaiana que tava no pé de Estevão voou e atingiu a testa de Constantino. Não doeu, mas a humilhação de uma chinelada foi demais. Isso era inaceitável, e Seu Constantino teria de fazer algo a respeito. Teria de obter vingança. Ao invés disso, escorregou de pernas abertas e foi ao chão. A bunda foi a primeira nos azulejos, seguida pelas costas e depois nuca, que fez um Boc ao tocar o chão. Querendo esconder a cara, dos olhos de Seu Constantino brotaram lágrimas que, felizmente, ele foi capaz de manter presas aos olhos. Não rolaram pelas bochechas, mas mesmo assim a humilhação era grande demais. Naqueles segundos horizontais e gelados ele quis de novo estar na cama. Logo a mão de seu adversário lançou sombras em seu rosto.
- Bem vindo.
Um ano depois, às quatro e trinta da manhã, Seu Constantino estava de pé. Dessa vez ele não seria humilhado. Um ano teria bastado, ele pensava, para se tornar bom em esquivas e assaltos na festa de boas-vindas. Ainda em seu roupão, Seu Constantino imitava O Touro Indomável daquele italiano fabuloso que ele esquecera o nome. O que importava era a luta.
Ele nem sabia quem era o novato, mas já tava pronto pra homenageá-lo com peso e velocidade. Ele só pensava na vingança, na retaliação. Ele estava pronto e acordado às quatro e trinta da manhã. Depois de assustar um novato, ele demoliria o velhaco Estevão. E ele nem precisaria de havaianas.
Quando o enfermeiro chegou, Seu Constantino não resmungou. Acendeu o cigarro do garoto, e sorrindo lhe perguntou:
- Por que você tá atrasado? 

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