Coberto pela
noite e pelo chão, Gongolô se enroscava em sua rachadura. Era uma casinha
simples e discreta, mas lá ele tinha tudo que precisava. Entre as paredes de
madeira Gongolô se abrigava e conseguia comida sem nenhuma dificuldade. Aos
sábados ele comia vermes, e nos outros dias salada. Vivia alheio a tudo,
desprezível em seu buraco, escondido numa fresta de madeira de uma raiz
qualquer.
Todo dia à
noite depois de jantar, Gongolô saía da sua toca para olhar o céu.
Pensava que o
céu era verde e marrom; e às vezes meio mal-distribuído. Assim era o céu para
ele; o teto de uma toca intransponível, muito maior que sua casinha. A visão
lhe causava pavor e admiração que não conseguia controlar. Dependendo do dia,
ria de sua própria pequenez ou se enroscava de medo.
Hoje ele
estava todo enrolado.
Do lado de
fora o predador falava:
- Há! Eu já falei. Não é nada demais, posso
te levar pra passear, amigo Gongolô.
Do lado de
dentro da toca, a voz de Gongolô era miúda:
-Sai já daqui, Corvo! Não somos amigos e
você quer só me devorar. Não vou cair neste papo de passeio.
- Amigo Gongolô, não se preocupe. Minha
barriga tá cheia e meus motivos são sinceros. Amo o céu e não aceito que você
não o conheça.
- Eu conheço o céu, Corvo. O vi todos os
dias depois de me alimentar. Ele é verde-escuro e balança no vento. As sombras
abrigam todos os seres vivos. Eu conheço o céu, seu charlatão!
- Você tá falando do topo das árvores,
Gongolô. Vamos, venha, sai daí que vou te levar prum passeio. Vou te mostrar o
céu de verdade. Ele é azul como o oceano e aberto como águas tranqüilas. Vem, sai
desse buraco.
- Não saio.
Irritado,
Corvo cessou de falar e começou a entalhar uma ferramenta. Enquanto houver corvos, haverá engenheiros e gambiarras, e então a mais esperta
das aves escolheu um graveto de boa extensão e rigidez. Precisava ser firme
para penetrar o buraco sem quebrar, mas flexível para o movimento preciso. Era
necessário que as arestas fossem diminuídas para parecer com uma vara de
pescar. Com o bico cinzento Corvo entalhou um anzol no fim de sua ferramenta e
começou o jogo de pega-varetas.
Gongolô não
se intimidou, e enrolado com mais firmeza mijou Cianeto de Hidrogênio. Nenhum
dos dois sabia o que era isso, mas os dois conheciam o acesso de espirros que a
mijada provocava. Irritado, Corvo se concentrou e por fim espetou Gongolô em
seu bico. Vermes saíram do buraco e quatro patas foram arrancadas do corpo de
Gongolô que chorava e esperneava de medo. Os dois alçaram vôo.
Gongolô já
não temia mais ser devorado. Eram os troncos intransponíveis, os galhos que
sustentam a abóboda azul, a altura e a distância e das rachaduras que lhe
provocavam pavor. Mas conforme foram subindo, mais quieto e maravilhado ele
ficou. Aos poucos seu corpo quitinoso relaxou, e ele pôde abrir-se para
experimentar o vento, o sol, o firmamento.
Era verdade,
Corvo era seu amigo. Acima das árvores realmente havia céu, como um senhor de
vestes coloridas. Às vezes era branco, às vezes escuro. Na hora certa se vestia
de lilás e outras cores invisíveis para seus olhos desprezíveis acostumados
apenas com vermes e escuridão.
No momento celeste,
Gongolô soltou um suspiro e Corvo riu. Num reflexo instintivo, Gongolô foi
partido em dois, e uma parte foi habitar as sombras do estômago de Corvo. A outra
parte voltou para o chão. Mas não havia problema, podia morrer, pois tinha
realizado mais que um sonho.
No chão, o
que restou foi devorado por vermes.
Esse define-me um pouco, acredito que todos tem a essência de Gongolô, mas continuam temendo algo ou alguma coisa e isso os impede de sair de suas tocas sacas?
ResponderExcluirPor isso gostei tanto deste :)