O zíper fechou o rosto de
Yudhistira e o corpo embalado em saco plástico foi preparado enquanto o Oficial
Gibb terminava o relatório em seu tablet.
- Unidade de policiamento Xátria
2, você está designada a acompanhar a Unidade doméstica Ikai para o Laboratório,
pra recarregar a bateria, limpeza, lanternagem e a porra toda antes do leilão
público. Demais unidades Xátria, procedimento padrão para óbito sem familiares
reconhecidos. Oficial Harker Gibb, protocolo de comando 523904.
Os chips neurais de todos
responderam, enquanto o meu ainda despendia energia para tentar conectar-se a
Yudhistira, dentro do saco de cadáveres. Eu ainda podia sentir o cheiro do
sangue, da morte dele, mas também percebia as infinitesimais transformações,
como se a vida ausente daquele corpo se transformasse em outras.
- Você tá bem, Ikai? – o oficial
me perguntou enquanto analisava de perto meus olhos de robô.
- Sim, oficial Gibb.
- Pensei que já tivesse
descarregado. O que foi? – a interrogação dele acompanhou a direção da minha
visão e pesou sobre o corpo de Yudhistira.
- Ele está morto.
- Sim... – Oficial Gibb coçou a
barba e esperou alguns segundos. Percebi seu cenho franzido.
- Oficial Gibb, eu ainda posso
senti-lo. – a resposta dele foi silenciosa, mas altíssima. Um suspiro.
Impaciência? Descrença? Resignação?
- Ora bolas, que grande merda.
- Perdão, oficial?
- Escute Ikai, há um novo
protocolo de investigação que não deveria existir, por ser baseado numa mentira.
O problema é que, apesar de ser uma idiotice sem tamanho, eu sou obrigado a seguir
essa besteira.
- Não compreendo.
- Exatamente. Mas vou explicar:
uma engenheira paquistanesa resolveu ignorar todos os séculos de ciência
robótica e epistemologia e desenvolveu um novo critério para a determinação do
que é inteligência artificial plena. É uma imbecilidade, uma fantasia
romântica.
- Perdão oficial Gibb, não
consigo perceber como uma coisa tem a ver...
- tem a ver – interrompeu o
policial – porque você disse que ainda sente o... o...
- ...o senhor Yudhistira.
- Sim, o Yudhistira. E essa
fábula de desinformação transformada em protocolo investigativo no Sri Lanka é exatamente
baseada nisso: qualquer demonstração de afeto por parte do robô.
- ...
- Não me julgue, robô. Essa terra
sempre foi dada a sentimentalismos.
- Oficial Gibb, vamos seguir logo
como isso, - eu disse – nós dois sabemos que minhas percepções estendidas nada
tem a ver com sentimentos.
Harker Gibb sorriu e pareceu
relaxar. Acionou gravação de voz em seu Tablet e começou a falar.
- Maravilha. Unidade doméstica
Ikai, Informe: como morreu seu último dono, senhor Yudhistira?
- Você mesmo viu na filmagem,
oficial. Suicídio.
- E porquê?
- Não saberia dizer, senhor.
- E Yudhistira está de fato
morto?
- Sim.
- No entanto a pouco você disse
que ainda pode senti-lo. O que quer dizer com isso?
- Sou programado com percepções
muito ampliadas se comparadas com os sentidos dos humanos. Essa capacidade permite
às unidades domésticas, como eu, analisar as condições de saúde dos
proprietários, bem como suas necessidades, potenciais riscos externos, tudo
visando o cuidado e tranquilidade. Quando
encontrei senhor Yudhistira morto, ainda senti as mínimas transformações de
vida. Ainda...
- Ainda o que, Ikai?
- Ainda o sinto. – olhei para a
porta do apartamento 2112.
Harker Gibb pareceu desolado. Ele
pausou a gravação e me perguntou enquanto se aproximava mais.
- Ikai, o que você acha da ideia
de alma?
- Não acho coisa alguma, senhor.
Ele sorriu e acionou novamente a
gravação.
- Ikai, você tem alma?
- Não. Apenas possuo uma
programação.
- E eu, Ikai, tenho uma alma?
- Eu não saberia dizer.
- e quanto ao senhor Yudhistira?
Eu soube naquele instante que
Harker Gibb esperava que eu dissesse que não, mas não estava na minha
programação mentir para agradar a ele. Estava na minha programação mentir
apenas para o prazer de Yudhistira. E legalmente ele estava morto, embora ainda
pudesse senti-lo. Peguei uma peça de xadrez caída no chão e recoloquei no
tabuleiro. Era só um peão. Apontei para o ponto luminoso entre meus olhos, o
Bindi que escondia o chip neural, e depois para o meu metafórico coração de
titânio, no meio do meu peito.
- Ele tem, e está aqui.
Gibb respirou longamente e com o
peso das nuvens de Ratnapura.
- Merda. Unidade Xátria – sua voz
cresceu em direção ao robô de policiamento que ainda restava no apartamento –
mudança de planos. Eu também irei para o Laboratório.
"meu metafórico coração de titânio..."
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