Mel de Coruja

 

 O sol passava horizontalmente pelas frestas da cortina como pinceladas retilíneas, porque a janela estava virada para o leste. O adormecido nem precisava do despertador, mas mesmo assim o havia colocado para as 7:15. O dedo repetiu a memória muscular e apertou o snooze... 8:30, porque ele não tinha compromissos marcados. 9:45, porque no inverno é bom ficar na cama até mais tarde, e o adormecido tinha assistido Além da Imaginação até as 3:30 da manhã. 

 Quando despertou de verdade, enrolou por mais dez minutos embaixo das cobertas.

 Preparou o café conferindo mensagens, e em seguida lavou a boca do gosto amargo com um Carlton. O homem desperto adorava trabalhar em casa, pois fazia seus próprios horários e conduzia a sua vida da maneira que decidia. É claro que o homem desperto era também um homem endividado, além de atrasado em seus trabalhos, graças à arte de procrastinar assistindo antigos seriados de ficção científica.

 A tv estava interessante depois do café-da-manhã composto de um segundo tubo de alcatrão e nicotina... É que fumar no inverno enquanto enrolava só uns dez minutinhos antes de começar a trabalhar é bom demais. Mas o procrastinador fumante também tinha outros afazeres, além de seu trabalho em home-office. Precisava lavar a louça dos últimos 6 dias.

  Fez isso ouvindo um podcast sobre produtividade e iniciativa.

 Às 4 da tarde, o dedicado trabalhador sentou-se em frente ao computador pra labutar. Levou uma caneca com café - essa era a única caneca limpa, porque dentre a louça lavada ele havia se concentrado apenas nos pratos e panelas.

 O homem que produzia tanto quanto o mel é produzido por corujas demorou no spotify até escolher a trilha sonora ideal. Ao começar a digitar, a mensagem que ele esperava desde que acordou apitou e acendeu na tela do celular.

      Logo mais tarde o sol se pôs sem iluminar o quarto.